quarta-feira, 16 de abril de 2008

Misérias e glórias do xadrez - parte 15

Retirado do site do grande jogador Hélder Câmara

Em julho de 1985, a FIDE estabeleceu as regras para a nova disputa pelo título: o match entre Karpov e Kasparov voltaria a ter o número fixo de 24 partidas; em caso de empate, o campeão manteria o título; e, em caso de derrota, teria direito a um match-revanche.

Em suma, a solução para o impasse na disputa pelo título mundial, causado pela regressão às normas de 1927, foi, simplesmente, voltar às normas elaboradas por Botvinnik e aprovadas pelo Congresso da FIDE de Paris, em 1949 - regras que haviam, sob pressão anti-soviética, sido alteradas pela própria FIDE desde 1963 e, especialmente, desde 1975. Nada poderia demonstrar de forma tão nítida a artificialidade daquelas mudanças: a FIDE parecia não saber o que fazer, senão repetir o que já havia sido feito.

Ao contrário do que disse Kasparov, a decisão não era uma concessão aos soviéticos, isto é, a Karpov. Ele conseguira o principal: garantir que o novo match começasse do zero, sem levar em consideração as 48 partidas anteriores. Era sobre Karpov que recaía esse golpe. Como já mencionamos, ele não pedira a anulação do match anterior – havia sido explicitamente contra a medida. No entanto, era penalizado com a anulação de cinco vitórias legítimas e duríssimas.

É verdade que o presidente da FIDE, Florencio Campomanes, havia, ao dar por terminado o primeiro match, em fevereiro, adiantado a proposta de que o novo match começasse em 0-0, mas essa questão dependia de aprovação posterior da entidade.

Apesar de claramente a seu favor, até hoje Kasparov repete que Campomanes, por pressão dos soviéticos, anulou o primeiro match para beneficiar Karpov. Pode ser que ele acredite nisso. É comum os charlatães, mais ainda os charlatães políticos, acreditarem na própria charlatanice. Porém, é difícil ver Campomanes, homem ligado à ditadura de Ferdinando Marcos – que, até quando se tornou um estorvo, foi o sustentáculo dos EUA no cerco à URSS a partir da Ásia - fazendo algo para beneficiar os soviéticos. Ainda mais com os norte-americanos concordando.

No entanto, não é bom simplificar a questão, mesmo que não tenhamos, por enquanto, uma explicação completa para ela: no final do primeiro match, realmente, Karpov estava muito mais desgastado, física e psiquicamente, do que Kasparov. Este, inclusive, ganhara as duas últimas partidas. Certamente, esticar ao infinito o match, até exaurir o oponente, era a tática de Kasparov, não a de Karpov.

ENCERRAMENTO

Como essa é uma questão que até hoje causa acirradas polêmicas, não poderemos evitar o exame de alguns detalhes.

Após a 47ª partida, jogada em 30 de janeiro, uma quarta-feira, Karpov pediu um adiamento da próxima, marcada para a sexta. Nesse dia, 1º de fevereiro de 1985, o presidente da FIDE, Florencio Campomanes, propôs a Yuri Mamedov, chefe da delegação de Kasparov, que o match fosse encerrado depois de mais oito partidas. Após esses oito jogos, se ainda não houvesse uma decisão (ou seja, se nenhum dos jogadores completasse as seis vitórias), Campomanes propunha a realização de um novo match, com número máximo de 24 partidas, e score começando em 0-0.

Mamedov disse que ia consultar Kasparov. Em seguida, Campomanes viajou e o ex-presidente da federação da Alemanha Ocidental, Alfred Kinzel, também presidente do comitê de recursos do match, ficou encarregado, pela FIDE, das negociações.

Kasparov recusou a proposta por causa do risco: bastaria a Karpov vencer uma dessas oito partidas para manter o título, enquanto ele ainda precisaria vencer quatro delas. Ou seja, era bastante claro para ele o risco da continuação do match – o que, aliás, não demandava muita perspicácia. Reparemos que a sua argumentação também serve para a continuação do match tal como então estava sendo disputado, com número ilimitado de partidas até que um dos jogadores vencesse seis delas. Tanto num caso quanto noutro, ele precisaria, após a 47ª partida, vencer mais quatro, enquanto Karpov precisaria apenas de uma vitória. Mas é evidente que ele notou a tendência da cúpula da FIDE para realizar outro match, começando em 0-0. Isso, naturalmente, o livraria de correr o risco ao qual se referiu.

Depois de mais um adiamento, dessa vez por razões administrativas – o match iria mudar de local - a 48ª partida foi jogada no dia 8 de fevereiro, outra sexta-feira. Kasparov venceu e pediu um adiamento da seguinte, que estava marcada para a segunda-feira, dia 11. No mesmo dia, o presidente da FIDE voltou a Moscou e, por sua iniciativa, a partida, agora marcada para a quarta-feira, dia 13, foi novamente adiada.

No dia imediatamente posterior, Campomanes e o árbitro do match, Svetozar Gligoric, reuniram-se com Kasparov para discutir um pedido do presidente da Federação de Xadrez da URSS, Vitaly Sevastianov. Este, por sinal, não era um cartola a la Averbakh ou Kotov. Além de enxadrista, Sevastianov era um cosmonauta, famoso por haver jogado, com Adrian Nikolayev, a primeira partida de xadrez no espaço sideral - durante a missão da Soyuz 9, em junho de 1970 -, que durou duas órbitas ao redor da Terra. Era também engenheiro espacial, um dos projetistas das naves Soyuz e da estação espacial Salyut e o chefe do treinamento das tripulações espaciais soviéticas. Em síntese, um homem respeitadíssimo.

Sevastianov pedia um intervalo de três meses no match, para que os jogadores se recompusessem. Diretamente, isso dizia respeito, sobretudo, a Karpov. Mas também era um problema das condições gerais da disputa, ou seja, significava privilegiar a capacidade dos jogadores no tabuleiro, e não um resultado obtido pela exaustão de um deles.

Obviamente, Kasparov respondeu a Campomanes e Gligoric que, se Karpov não queria continuar, devia abandonar o match. Ele interpretara o pedido de Sevastianov como uma fraqueza de Karpov. E não seria ele quem deixaria de se atirar sobre uma fragilidade do oponente.

Pode ser que, nestes tempos de vale-tudo monopolista e mercantil, alguns considerem a resposta de Kasparov muito normal, pois se tratava de uma competição, e ele queria ganhar. No entanto, tratava-se de uma competição de xadrez, e não de uma competição para ver quem saía vivo – ou para matar o oponente. Mas essa diferença, realmente, ele jamais foi capaz de entender. Aliás, sempre fez questão de não entender - pelo menos, quando achava que quem poderia sair morto era o outro.

Além disso, com a lastimável exceção de Alekhine, que não primava pela esportividade – nem pela beleza de caráter - essa nunca foi a tradição do xadrez. Pelo contrário. Xadrez é esporte, e não uma guerra onde não há limites em relação ao oponente. Para ser exato, até na guerra existem limites – motivo pelo qual, após a II Guerra, alguns criminosos foram julgados e enforcados na aprazível cidade alemã de Nuremberg.

Certamente, sempre existiram jogadores de xadrez que estavam dispostos a tudo para ganhar – e qualquer enxadrista conhece, pelo menos, um ou outro. Porém, jamais essa conduta foi incensada como virtude, e sim execrada como lepra moral. Os grandes jogadores, mesmo Fischer – ver a sua atitude quando Tahl foi hospitalizado, durante o Interzonal de 1962 – sempre respeitaram esses limites, que são a essência mais pura do respeito ao adversário e, de resto, ao próprio esporte. Nisso, realmente, como em relação a muito mais, o único “grande predecessor” de Kasparov foi Alekhine.

Mas, inclusive por boa fé (mas principalmente por má-fé - e, entre estes, sobretudo o próprio Kasparov), houve quem descrevesse essa atitude em relação à proposta da Federação soviética como um ato de coragem e (cáspite!) até mesmo de heroísmo. Lamentavelmente, isso é uma bobagem. Somente para pessoas muito simplórias, dessas que acreditam no equivalente político da mula-sem-cabeça, ou para bajuladores da mídia reacionária, a URSS era aquela ditadura totalitária pintada pela propaganda da “guerra fria”. Se fosse, não teria durado mais de 70 anos, vencendo, inclusive, a máquina de guerra nazista. É verdade que, como em qualquer sociedade, havia limites, e é verdade que, ainda que confusamente a partir do final da década de 50, os soviéticos percebiam que estavam em meio a uma guerra – e isso determinava a natureza de boa parte desses limites. Mas Kasparov sabia perfeitamente que nada lhe aconteceria de muito grave por discordar da Federação da URSS – no máximo, teria de arcar com as conseqüências que, em qualquer país, arcam os que discordam publicamente da entidade ou do coletivo de que fazem parte.

COLETIVO

Porém, era essa noção, a de coletivo, que lhe faltava - e sempre lhe foi estranha. Ainda mais quando sabia que contava com o apoio dos inimigos do seu país e do seu povo, como ficou evidente na conferência de imprensa que Campomanes convocou, no dia 15 de fevereiro. Assim, suas tendências anti-sociais estavam em plena consonância com aqueles que há muito tempo queriam destruir a sociedade soviética. Hoje, quase 20 anos depois que a sociedade soviética foi realmente destruída, a questão das intenções imperialistas já não é mais matéria passível de dúvida ou discussão. Na verdade, também não era na época, pois essas intenções eram explícitas. Mas era com essa gente que Kasparov acumpliciava-se.

Porém, ninguém ainda conhecia muito bem o oponente de Karpov. Na tarde do dia anterior, isto é, 14 de fevereiro, Campomanes avisou a Mamedov que, como Kasparov recusava um acordo sobre o encerramento do match, usaria de sua autoridade para terminá-lo. No dia 15, quando o presidente da FIDE começou a ler sua declaração para a imprensa, Kasparov estava sentado na bancada dos jornalistas estrangeiros.

Estranhamente, Campomanes afirmou, na declaração, que os dois jogadores estavam de acordo com o encerramento do match. Provavelmente, achava que a cúpula do xadrez soviético – ou alguma instância do governo – mandavam em Kasparov, e também em Karpov. Devia ser essa a idéia que as elites filipinas faziam da URSS... Porém, aberta a entrevista coletiva, teve que se desmentir. Perguntado pelos jornalistas, disse que havia se reunido com Karpov pouco antes da conferência de imprensa e que o campeão estava contra a suspensão, e queria jogar a próxima partida de acordo com a agenda. Respondendo a outra pergunta, disse que Kasparov também tinha a mesma posição.

Anatoli Karpov chegou à conferência de imprensa no meio da entrevista de Campomanes. Ao lado do presidente da FIDE, confirmou que era contra a decisão e que, se dependesse dele, o match seria retomado logo. Kasparov, em meio aos enviados e correspondentes estrangeiros, interpelou Campomanes com a pergunta óbvia: se os dois jogadores queriam continuar, por que não continuar?

É difícil saber o que ele realmente queria. Talvez pensasse, após o pedido de Sevastianov e de sua segunda vitória consecutiva, que Karpov estava nas últimas. Mas não é garantido que fosse esta a sua principal motivação. Pode ser, também, que, diante do encerramento do match, apesar da decisão da FIDE não lhe ser desagradável, tenha visto uma oportunidade de fazer o papel que a mídia estrangeira estava esperando dele... Seja como for, tanto numa quanto noutra hipótese, uma coisa é certa: era uma encenação para a mídia. O que ficou bastante claro quando Campomanes sugeriu que se aproveitasse a presença dos dois jogadores, convidando-os a discutir a questão em outra sala, a portas fechadas. Kasparov recusou. Mas, depois que Karpov e os dirigentes mantiveram a reunião e se retiraram, deixando-o só com a imprensa, mudou de posição e resolveu entrar na sala. Não era possível continuar a encenação sem a presença dos outros.

O campeão acatou a decisão da FIDE. O desafiante recusou-se a assinar o acordo que encerrava o match. Nenhum dos dois poderia adivinhar que o match encerrado era apenas o primeiro de cinco entre eles, ao fim dos quais jogariam 144 partidas pelo título mundial.

GLIGORIC

Karpov havia feito um esforço quase sobre-humano. Mais uma vitória e ele fecharia o match, enquanto Kasparov, depois da 48ª, ainda precisaria vencer três partidas e, ao mesmo tempo, impedir que seu oponente ganhasse qualquer uma. Em suma, um altíssimo risco.

Do ponto de vista de Karpov, de que valera o seu esforço? Agora, tudo começaria do zero, com Kasparov tendo suas cinco derrotas apagadas do score. Não é preciso dizer com quem estava a vantagem psicológica, que não era pequena. Qualquer um que já tenha disputado uma competição enxadrística sabe como algo assim pode interferir, e interfere, no desempenho de um jogador.

Mas as coisas não ficaram por aí. Em seguida, Kasparov levantou suspeição contra o árbitro do primeiro match, o iugoslavo Svetozar Gligoric.

Não era qualquer suspeição. Gligoric havia sido um dos maiores jogadores de todos os tempos. Durante anos, foi, provavelmente, o melhor jogador fora da URSS – sem dúvida, melhor do que aqueles que, antes de Fischer, disputavam esse título no ocidente: o polaco-americano Reshevsky, o polaco-argentino Najdorf e, depois, o dinamarquês Bent Larsen. Era, além disso, unanimemente considerado um grande teórico e um grande analista, um dos poucos que era respeitado até por Fischer.

Porém, mais do que suas qualidades enxadrísticas, Gligoric era (e é, hoje, com 84 anos) um herói da guerra contra o nazismo, onde lutou na guerrilha iugoslava – os famosos “partisans”, que, na batalha do Neretva, em 1943, haviam quebrado o moral das divisões alemãs, italianas e fascistas croatas. O caráter de Gligoric jamais foi matéria de dúvida ou discussão. Pode-se discordar dele – mas não desrespeitá-lo. Sua atitude posterior, já idoso, de opor-se ao esquartejamento de seu país, que lhe causou tanta amargura, somente confirma o que estamos dizendo.

Kasparov, porém, como sabemos, não era dotado desse tipo de escrúpulo diante de pessoas com estatura moral imensamente superior. Acusou Gligoric de haver favorecido Karpov. Onde e quando, ninguém sabe, e a única coisa que Kasparov apresentou contra ele foi sua posição favorável ao encerramento do primeiro match, que já naquela época apresentava como uma medida com o exclusivo objetivo de prejudicá-lo. No entanto, que árbitro de bom senso não seria favorável a acabar com o que parecia uma loucura interminável?

Apesar desse alarido, Campomanes anunciou que Gligoric seria o árbitro do novo match. No final de julho, atacado por Kasparov, o iugoslavo renunciou. A FIDE, numa declaração oficial no dia 6 de agosto de 1985, não aceitou a renúncia e confirmou Gligoric. Porém, duas semanas depois, recuou: designou o alemão Lothar Schmid, que havia sido árbitro do match Fischer-Spassky. Mas, dessa vez, foi Schmid que não aceitou. A FIDE acabou por nomear dois árbitros: o búlgaro Malchev e o soviético Mikenas – originário da Lituânia – para se revezarem na função.

O próximo passo foi uma campanha na mídia fora da URSS. Nunca a mídia ocidental, até então, concedeu tanto espaço para um jogador supostamente soviético – naturalmente, para atacar um compatriota muito mais identificado com seu próprio país. Da “Playboy” até o mais obscuro pasquim reacionário, para não falar da TV, estavam todos à disposição de um soviético e membro do PCUS...

E, então, na Sala de Concertos Tchaikovsky, em Moscou, a 3 de setembro de 1985, começou o segundo match entre Karpov e Kasparov.

Misérias e glórias do xadrez - parte 14

Retirado do site do grande jogador Hélder Câmara

Devido à sua importância para o tema de que nos ocupamos na parte anterior deste artigo - e, inclusive, pelo marcante estilo literário - tomamos a liberdade de, parcialmente, reproduzir a seguinte mensagem de mestre Hélder Câmara. Para os não aficionados em xadrez, o Mestre Internacional Hélder Câmara, duas vezes campeão brasileiro, três vezes vice-campeão, integrante da equipe brasileira nas Olimpíadas de Lugano, Siegen, Nice, La Valetta e Tessalônica, além de participante em vários outros eventos internacionais, relevante teórico - a ele se deve a Defesa Câmara, também chamada de Defesa Brasileira – é uma das glórias do xadrez brasileiro. Porém, sobretudo, é homem de profunda cultura humanista. Eis a sua mensagem:

“SP. 13 nov 2007.

“Caro Carlos Lopes, apenas algumas observações sobre o seu precioso e preciso trabalho: o Zukhar era realmente um eficientíssimo parapsicólogo, com PhD na Universidade de Leningrado, onde havia uma cadeira específica nessa área, que foi estimulada até em demasia pelas autoridades soviéticas, mas que agora está desativada.

“Zukhar, que já trabalhara com Korchnoi, sentava-se na primeira fila de espectadores do match Karpov x Korchnoi e, não obstante espesso vidro colocado no proscênio, ele teria conseguido influenciar negativamente na atuação de Korchnoi - segundo alegavam os secundantes do descarado apátrida. Daí, porque ele se valeu desses dois aventureiros da seita Ananda Marga para criar uma pantomima em Baguio, ameaçando também abandonar o match, se Zukhar não fosse colocado, no máximo, na oitava fileira de cadeiras distante do palco - para que as suas ondas mentais não influenciassem negativamente na mente de Korchnoi. E assim foi feito!

“Quando o match ficou igualado em 5 x 5, foi a vez da Delegação Soviética fazer suas exigências: se Zukhar não se sentasse onde quisesse, aquilo seria considerado como uma acusação espúria contra Karpov e ele (Karpov) não jogaria mais! Aí, foi a vez da FIDE ceder, e Zukhar sentou-se na primeira fila do teatro. É claro que isso valia muito mais como provocação e, quem sabe, como uma insinuação de que Zukhar podia realmente interferir no resultado da partida - capaz de perturbar uma mente sempre deturpada como a de Korchnoi. Se isso teve influência ou não sobre Korchnoi (é possível que tenha tido, não por causa de Zukhar, mas pela cabeça fraca do próprio Korchnoi), o fato é que ele jogou uma defesa inédita em seu repertório, a Pirc - sendo facilmente derrotado.

“Depois disso, criou-se a lenda de que a KGB ameaçara a esposa e o filho (Igor) de Korchnoi para que ele perdesse a partida. E, mais, eles seriam proibidos de deixar a URSS para se encontrar com o 'papai' Korchnoi (que há muito estava amancebado com uma coroa chamada Petra - com quem vive até hoje). Aqui, vem a parte cômica dessa história: a KGB (....) liberou mulher e filho de Korchnoi para deixarem a URSS e se unirem a ele, desmascarando com isso o seu blefe (!). E o que fez Korchnoi? Recusou-se terminantemente a recebê-los na Suíça, sendo que todos conhecem o processo que o seu filho Igor moveu contra ele, por danos morais e materiais!

(....)

Um abraço amigo, Hélder Câmara.”

Com esta inestimável ajuda, encerramos as nossas considerações sobre Korchnoi e sua entourage. Naturalmente, elas não seriam necessárias se até hoje não houvesse alguns incautos – outros, nem tão incautos assim – que ainda repetem a propaganda reacionária de 30 anos atrás, como se fosse o supra-sumo da verdade. Embora, é forçoso reconhecer que, na atualidade, esse besteirol permanece insepulto principalmente devido a Kasparov.

KARPOV

Já que começamos por um rescaldo da parte anterior deste artigo, voltemos por um momento às relações entre Botvinnik e Karpov.

Há um ano, quando Karpov esteve no Brasil, um amigo, Ubirajara Nascimento Rodrigues, diretor do Clube de Xadrez Virtual (CXV), entidade que se dedica ao xadrez por e-mail, pediu-me que formulasse alguma pergunta ao ex-campeão mundial. De pronto, sugeri a ele a única pergunta que veio à mente: “qual foi a influência de Botvinnik em sua carreira?”. Transcrevemos a resposta de Karpov, na entrevista a Ubirajara:

“Por algum tempo estudei na Escola de Botvinnik e a coisa mais importante que ele me passou foi que você tem que trabalhar muito o xadrez e se preparar muito seriamente, trabalhar todos os dias. Isso é muito importante” (o conjunto da entrevista pode ser encontrado em www.cxv.com.br/html/varios/AnatolyKarpov.htm).


Isso foi tudo. Nem uma palavra a mais. Nenhuma observação sobre estilo ou sobre análise, ou sobre escolhas de linhas ou planos estratégicos – um conceito que Botvinnik desenvolveu e ao qual Karpov sempre foi rigorosamente fiel.

Bruce Pandolfini (mais conhecido, pelos que assistiram ao filme “Lances Inocentes”, como o treinador, interpretado por Ben Kingsley, do garoto Josh Waitzkin) escreveu que as partidas de Karpov são sempre “didáticas”, ou seja, são claras de uma tal forma que sempre ensinam alguma coisa a quem as refaz. É verdade. Mas essa é uma característica comum entre Karpov e Botvinnik.

Havia outras características em comum. Ambos eram membros do PCUS. Karpov, além de deputado eleito para o Soviete Supremo, foi membro do Comitê Central do partido.

Porém, é verdade que, nisso, tanto pode haver uma fonte de identidade quanto de discrepâncias: os comunistas da época em que Botvinnik se formou eram aqueles que ergueram um país arrasado; que, sob cerco, construíram uma indústria poderosa e coletivizaram o campo; que enfrentaram uma luta feroz dentro do país contra a quinta-coluna capitulacionista; que, logo em seguida, tiveram de resistir e vencer a invasão nazista, com rios de sangue encharcando a sua terra; e que, depois de tudo isso, comandaram a nova reconstrução do país. Em suma, gente que estava próxima dos personagens de Ostrovsky, em especial o Pavel Korchagin de “Assim Se Forjou o Aço”.

Karpov, nascido em 1951, não conheceu essas épocas de sofrimento e heroísmo, exceto de forma indireta. Como alguns outros milhões de membros do PCUS dessa época, Karpov viu o país ser corroído por dentro - pelo acomodamento, espírito burocrático, bajulação ao ocidente e, simplesmente, pela traição - sem saber o que estava acontecendo, e, portanto, sem saber o que fazer diante do cada vez mais cinzento ambiente que surgiu a partir de 1956. No entanto, mesmo sem saber o que fazer, mesmo paralisados e intimidados, eles não eram trânsfugas. Faziam, e fizeram, o que podiam – isto é, o que a sua consciência lhes permitiu fazer – pelo país e pelo seu povo. O papel de trânsfuga estaria destinado a uns poucos, os Gorbachev, Yeltsyn e Kasparov.

POLÍTICA

É interessante, do ponto de vista histórico, observar que a partir de 1972 a disputa pelo título de campeão mundial de xadrez torna-se abertamente política. Mesmo com o abandono de Bobby Fischer, não se voltou ao estado anterior, em que a luta política ficava em segundo plano em relação à disputa enxadrística. Daí, ser totalmente inútil – e mentiroso – ignorar essa dimensão agudamente política que o xadrez, em especial a luta pelo título mundial, adquiriu. Não por acaso, Kasparov não a ignora. Seu ponto de vista é, somente, o da direita em relação a essas disputas. Na verdade, “Meus Grandes Predecessores” somente pode ser lido como uma auto-justificativa da posição reacionária e colaboracionista do autor. O resto, inclusive o xadrez, é apenas uma espécie de excipiente químico.

O caráter de Kasparov começou a ficar nítido logo depois de encerrado o primeiro match com Karpov. E, notemos, ele foi precoce: tinha apenas 22 anos. Em relação a Korchnoi, ele possuía algumas lastimáveis vantagens, além da precocidade de caráter, ou da ausência dele: não era um histérico, exceto em momentos extremos; sempre esteve mais para a conduta fria. Ou, diria um psiquiatra, estava mais para sociopata do que para neurótico.

Logo depois do primeiro match, Kasparov propôs que o lugar de campeão fosse considerado vago. Era uma proposta absurda. Depois de cinco meses e 48 partidas, quando o match foi anulado pelo presidente da FIDE, o resultado estava em 5-3 para Karpov, que, inclusive, havia sido contra a anulação. Por que, então, considerar vago o título?

Não era apenas a popular “guerra de nervos”. A pressão era para que o próximo match começasse do zero, sem considerar os resultados do primeiro. Evidentemente, o principal prejudicado com isso seria Karpov, uma vez que teria cinco vitórias desconsideradas e, Kasparov, apenas três.

Quanto à “guerra de nervos”, o problema é que os soviéticos, em geral, não estavam acostumados com isso dentro do seu próprio país – e, menos ainda, dentro do PCUS, ainda que ela existisse. Fazia 30 anos que toda a ideologia oficial era uma negação das formidáveis tensões inerentes à construção de um novo regime social. E, relembremos, não apenas Karpov, mas também Kasparov, eram membros do PCUS. O último, além do mais, era dirigente nacional da Juventude Comunista (Komsomol). O fato é que tanto Karpov quanto a maioria dos soviéticos não conseguia entender o sentido do que Kasparov fazia. Em suma, subestimavam – ou, mesmo, ignoravam totalmente – a malignidade de suas ações, seu oportunismo e falta de escrúpulos. Daí a sua popularidade nesse momento, em especial entre os jovens, criados, fazia anos, no culto à ilusão.

Porém, a mídia imperialista – e, provavelmente, os serviços de “inteligência” ocidentais – perceberam logo qual era a questão. Isso, aliás, foi o mais peculiar no caso. Desde o início de sua carreira, os inimigos da URSS perceberam que podiam contar com Kasparov. No entanto, este jamais foi algum “dissidente”. Como podiam, então, estar tão bem informados sobre Kasparov?

Se algum espiroqueta reacionário interpretar essas questões como tentativa nossa de dizer que Kasparov já era, antes dos 22 anos, um agente da espionagem ocidental, isto será apenas porque se trata de um espiroqueta.

A questão é outra. Na década de 80, após a chegada de Ronald Reagan à Casa Branca, houve uma mudança no foco da política imperialista em relação à URSS. Até então era nos chamados “dissidentes” - algumas almas penadas sem quase respaldo algum dentro do país – que se depositavam as esperanças da mídia e dos órgãos de governo dos EUA.

Nos anos 80, isso mudou. Percebeu-se que com essa gente pouco se poderia fazer para sabotar a URSS por dentro. Os chamados “dissidentes” eram uma quinta-coluna, mas de uma ineficiência tremenda, que faziam questão de colocar um rótulo na testa e estar longe de qualquer atividade pública real – ou seja, faziam questão de cortar suas ligações com o povo e com os órgãos que detinham o poder na URSS.

Assim, o foco mudou para dentro do próprio PCUS e do governo. De certa forma, era a volta da política seguida pelos alemães nos anos 30 do século XX. Nesses anos, como registraram pessoas insuspeitas como Joseph Edward Davies, embaixador dos EUA em Moscou, e até pelo príncipe e lorde Mountbatten – que, além de primo do rei da Inglaterra, era sobrinho da última czarina – os soviéticos haviam acabado com o espaço para a quinta-coluna dentro do Estado soviético e do PCUS.

Isso teve efeitos duradouros. O foco nos “dissidentes” não era apenas uma opção dos governos imperialistas. Era também porque não tinham outra opção. Esta somente surgiria nos anos 80, quando os 30 anos anteriores de progressivo culto ao mercado, defensiva ideológica e conciliação começaram a brotar em frutos amargos e, de resto, venenosos – finalmente havia, depois de três décadas de gestação dentro do PCUS e do Estado soviético, uma camada que poderia ser aproveitada com muito mais sucesso do que aqueles indigentes, quer dizer, “dissidentes”.

PRIVILÉGIO

Portanto, incensar Kasparov era plenamente coerente com essa nova política imperialista. Para muitos, era algo estranho, pois eles nunca agiram dessa forma quando o título mundial de xadrez era disputado por dois soviéticos. Mas, também, jamais houve antes um “soviético” da marca de Kasparov disputando o título.

Assim, quando Kasparov comparou a situação depois do match anulado com a situação após a morte de Alekhine, em 1948, as moscas, que já voejavam em torno dele há algum tempo, ficaram particularmente assanhadas. Evidentemente, havia uma diferença entre a situação de 1985 e a de 1948: Karpov estava vivo. Mas o problema era exatamente esse: Karpov era um representante do regime que queriam matar.

Logo, Kasparov se tornou, na propaganda, um perseguido pelos soviéticos, que estariam prejudicando sua preparação e, especialmente, negando a ele a ajuda de analistas do mesmo porte daqueles que estavam com Karpov. Hoje, ninguém sério repete mais essas coisas. Kasparov escolheu e demitiu quem ele quis da sua equipe – isto é, naturalmente, dentre aqueles que aceitaram fazer parte dela. Porém, há outro aspecto: o GM Valery Salov demonstrou convincentemente que Kasparov foi privilegiado em relação a Karpov na assistência durante os matches. O que era perfeitamente coerente com a defensiva em relação à campanha deflagrada a partir do ocidente. Aliás, não era a primeira vez que acontecia algo semelhante.

E, agora, leitor, como o espaço acabou, o resto fica para a próxima.

Misérias e glórias do xadrez - parte 13

Retirado do site do grande jogador Hélder Câmara

No match entre Anatoli Karpov e Garry Kasparov, em Moscou, 1984, depois de apenas nove partidas, o score já estava em quatro a zero a favor de Karpov. Nem mesmo um mês havia se passado desde o início do match – a primeira partida foi em 10 de setembro; a nona, em 5 de outubro.

Tudo indicava que o campeão manteria o título pela terceira vez. No entanto, seguiu-se uma série impressionante de 17 empates. Pelas regras vigentes no passado, 26 partidas com o score de 4-0 seriam mais do que suficientes para que Karpov mantivesse o título - e por uma das diferenças mais dilatadas de toda a história do xadrez.

Mas as regras haviam sido mudadas – desde 1978. Não havia mais número fixo de partidas – venceria o match quem ganhasse seis partidas, independente do número total. Em suma, aceitaram-se as exigências de Fischer em 1975, embora nem assim ele enfrentara Karpov, perdendo o título por abandono.

Bem mais importante do que o autor das exigências – Fischer, como agora parece ter em parte percebido, foi um joguete na guerra contra os soviéticos – era o significado dessa mudança de regras: voltara-se, exatamente, à regra do match entre Capablanca e Alekhine, travado em 1927, ou seja, 57 anos antes.

Naturalmente, já se sabia no que redundava essa regra, quando os oponentes eram razoavelmente equilibrados: num oceano de empates e na decisão pelo esgotamento de um dos contendores. Uma espécie de maratona da morte enxadrística. A nova regra, instituída quando os soviéticos voltavam a ter a hegemonia do xadrez mundial, favorecia o desafiante contra o campeão, quanto mais não seja pelo ímpeto em conquistar o título – ninguém é capaz de ter o mesmo ímpeto para conservá-lo, sobretudo depois de fazer isso mais de uma vez.

Como nos antigos filmes de Hollywood, o pistoleiro mais jovem tem muito mais gana de matar o pistoleiro veterano, do que este de matar o mais jovem. Além disso, há uma vantagem intrínseca de ser mais jovem. Os campeões, como é óbvio, com o passar dos anos tendiam a ter mais idade do que os desafiantes – e vencer seis partidas, em um match de número ilimitado, passaria a ser cada vez mais, para o campeão, algo parecido com o suplício de Tântalo.

No caso de Karpov, pior ainda, pois se sabia que a saúde do campeão, apesar de não alcançar os extremos de Mikhail Tahl, não era, propriamente, o que se chama uma saúde de ferro.

Apesar disso, na 27ª partida, Karpov venceu outra vez. Agora o match estava em 5-0. Nenhum campeão conseguira antes uma tal façanha, sobretudo quando tinha contra si toda a mídia mundial e, inclusive, boa parte da soviética, que torcia sem inibições por Kasparov, assim como a maior parte da audiência que comparecia quase todos os dias à Sala das Colunas da Casa dos Sindicatos, onde se travava o match. Bastava mais uma vitória para que continuasse com o título.

Depois de mais três empates, na 31ª partida, Karpov conseguiu outra vez ficar em posição superior. Era possível tentar a vitória – e fechar o match. O próprio Kasparov, posteriormente, admitiu que as chances de Karpov vencer essa partida eram mais do que boas. No entanto, o campeão acabou por aceitar o empate proposto pelo oponente e, segundo várias testemunhas, parecia “aliviado” quando o jogo terminou. Essa partida foi jogada no dia 7 de dezembro de 1984 – portanto, o match já durava três meses.

Na partida seguinte, a 32ª, Karpov perderia pela primeira vez.

No decorrer das 48 partidas do match – finalmente anulado pelo presidente da FIDE, o filipino Florencio Campomanes – o campeão perderia 10 quilos e não estava mais à beira da exaustão. Já havia passado esse limite. Quando o match foi interrompido, o score estava em 5-3.

Porém, bem antes disso, havia começado a cruzada. Ou, melhor, a cruzada que havia começado com o artigo de Arrabal (ver parte 1 deste artigo), quando Kasparov nem era conhecido no ocidente, de repente agudizou-se.

Depois da 12ª partida, quando Kasparov propôs o empate no 21º lance, o GM Harry Golombek, um conhecido – por desastrado – árbitro da FIDE, publicou no “Times”, de Londres, um artigo. Segundo ele, seu preferido, Garry Kasparov, estava empatando porque os comunistas ameaçavam a sua família, e prometiam cumprir as ameaças, se ele vencesse o match. Hoje, que conhecemos bem a sra. Clara Kasparov, essa história parece um delírio. E parece um delírio pela simples razão de que é um delírio. Diante da ilustre genitora de Kasparov, o mais provável é que os comunistas soviéticos, havia duas décadas cultivando o apaziguamento, saíssem correndo...

ALBURT

Em março de 1985 – portanto, um mês após a última partida deste match - Lev Alburt, um desertor da URSS que se transformara em campeão dos EUA, escreveu em “Chess Life” (a revista da Federação dos EUA – USCF) que Karpov ingeria estimulantes durante o match. Era isso, supõe-se, o que explicava o fato de não haver se rendido a Kasparov, apesar do suplício de Tântalo em que a FIDE transformara a disputa do título mundial.

A prova, segundo Alburt, era a presença do dr. Vladimir Zukhar no match em que Karpov defendera o título pela primeira vez, sete anos antes, em Baguio, Filipinas, contra Korchnoi. O artigo de Alburt afirmava que, ao contrário do que se pensava, Zukhar era um especialista em estimulantes.

Esse “ao contrário do que se pensava” era sacado para resolver um grave problema da história de Alburt: em 1978, durante o match de Baguio, o mesmo dr. Vladimir Zukhar foi acusado de ser um parapsicólogo da KGB, que faria parte da delegação de Karpov com a função de hipnotizar, ou influenciar por telepatia, o seu oponente. Toda a imprensa americana e européia havia publicado e republicado esse suposto currículo de Zukhar. Agora, seu nome reaparecia no artigo de Alburt como especialista em estimulantes...

Era pouco provável que Zukhar mudasse de profissão em apenas sete anos. Mas não era isso o que Alburt dizia: segundo seu artigo, já em 1978, Zukhar era responsável por administrar estimulantes a Karpov. Portanto, supõe-se, estavam também explicadas as derrotas de Korchnoi – só podiam ser porque Karpov usava estimulantes.

Porém, Alburt desertara para os EUA em 1979. Se sabia de alguma coisa sobre Zukhar, levara seis anos calado, enquanto a imprensa norte-americana fazia um carnaval com a história do “parapsicólogo da KGB”. Mas Alburt poderia ter recebido informações, ou boatos, mais recentes da URSS. No entanto, ele não se preocupou com essas minudências conhecidas como fontes, ou com detalhes tais como critérios de verossimilhança, esse negócio que só serve para atrapalhar a vida de propagandistas aplicados.

Em meio a uma mistura de abacaxis com rodas de velocípedes, Alburt, porém, disse algo interessante. É verdade que, para isso, ele torce mais uma vez o parafuso, por pouco não ingressando no torneio de candidatos do velho Juqueri. Diz ele que Zukhar passou a trabalhar com a equipe de Kasparov. Como podia ser isso? Quem estava tomando estimulantes era Karpov; a prova disso era que Zukhar, que o acompanhou no match de 1978, era “especialista em estimulantes”, e não “parapsicólogo”; mas, agora, era com Kasparov que ele trabalhava. Por acaso, Kasparov estava usando estimulantes? Não, segundo Alburt. Era Karpov quem usava os estimulantes. Se o amigo leitor não entendeu, não fique preocupado. Isso não tem a menor importância.

Mas, continua Alburt, Zukhar havia revelado a Kasparov e sua equipe que Karpov “entraria em colapso” se o match fosse muito longo. Logo, concluía Alburt, por isso Kasparov esticou o match, inclusive propondo empate atrás de empate.

A história pode ser, e era, absurda, mas não a descrição da tática de Kasparov. Foi mais ou menos – ou, talvez, foi exatamente – o que ele fez.

Quanto a Zukhar, era apenas um psicólogo, professor da Universidade Central de Moscou, que há longos anos acompanhava o campeão. Somente isso (cf. Karpov e Baturinsky, “From Baguio to Merano”, Pergamon Press, 1986).

Note-se que o indefectível coronel Edmonson, em seu livro sobre o match de 1978, também refere-se a Zukhar apenas como “consultor psicológico”, apesar de seu ponto de vista ser, naturalmente, oposto ao de Karpov e Baturinsky – chefe da delegação soviética em 1978 – no livro citado. A CIA estava, evidentemente, informada sobre quem era Zukhar. Mas, certamente, não foi por isso que Edmonson manteve-se fiel à verdade quanto a ele. O motivo de sua moderação ficará claro em seguida (cf., E. B. Edmonson, “Chess Scandals: The 1978 World Championship Match”, Pergamon Press, 1981).

MUDANÇA

Kasparov não começou o match com essa tática. Pelo contrário, nas sete primeiras partidas jogou nitidamente para decidir o match o mais rápido possível. Na oitava, pela primeira vez, propôs o empate depois de apenas 20 jogadas. Mas, na seguinte, confiando na sua preparação doméstica contra a linha pela qual Karpov optou, reincidiu em tentar decidir logo – e o final foi ganho pelo campeão, um dos melhores finalistas da história do xadrez.

A partir daí, Kasparov, nitidamente, mudou. O que teria acontecido?

Somente muitos anos depois, soube-se que seu ex-professor, Mikhail Botvinnik, num erro pelo qual pagaria caro, havia ido em socorro de Kasparov, propondo exatamente que ele esticasse ao máximo o match, pois, argumentou, com isto a vantagem passaria para o lado do desafiante. Certamente que, nisso, entrava em consideração, também, a diferença de idade. Mas não principalmente. Kasparov tinha 21 anos, mas Karpov tinha apenas 33. Não era isso o mais relevante.

Botvinnik conhecia Karpov tão bem quanto conhecia Kasparov. Os dois eram produtos da sua escola. No entanto, nessa hora, preferiu um de seus pupilos contra o outro. Resta saber porquê. Nisso temos apenas hipóteses.

Mas, antes que aventemos essas hipóteses, resta dizer que Karpov era um excelente jogador de torneio – até hoje, ele é o jogador que mais venceu torneios, e o campeão que durante o seu reinado mais jogou e ganhou em torneios. No entanto, Botvinnik sabia que ele não tinha um desempenho semelhante em matches.

Desde que ganhara o título, após a recusa de Bobby Fischer em defendê-lo, Karpov havia mantido o título nada menos que duas vezes – mas as duas contra Korchnoi, um jogador vinte anos mais velho. E ele era, sem dúvida, um jogador melhor do que Korchnoi.

Este, aliás, quando soviético, já era o mais detestado pelos colegas, basicamente por problemas de caráter. Depois de sua deserção para o ocidente, fizera o possível para bater os recordes de todos os anti-comunistas anteriores, juntos e somados. Sua posição política parecia, para que os leitores tenham uma idéia, um pouco à direita do reverendo Moon, dono do jornal favorito de Reagan, o “Washington Times”. Em 1978, até mesmo Mikhail Tahl, que geralmente não tinha inimizades, somou-se à equipe de Karpov para ajudá-lo a derrotar Korchnoi.

(Aqui, achamos necessário um parênteses. Alguns leitores podem estranhar a forma como nos referimos a Alburt e Korchnoi - como desertores - apesar dos próprios americanos assim os tratarem. Hoje, muitos que não viveram aqueles anos não têm – e não podem ter – consciência de que havia uma guerra entre os EUA e a URSS. Não se chamou àquele período de “guerra fria” por acaso. Talvez o adjetivo “fria” fosse inapropriado. Mas não o substantivo “guerra”. Passar para o outro lado, e essa era a questão de Alburt e Korchnoi, no meio de uma guerra, tem o nome de deserção, embora possa haver nomes piores.)

O fato é que no primeiro match com Korchnoi, em Baguio, Filipinas, onde o psicólogo Vladimir Zukhar foi acusado de ser um parapsicólogo da KGB, Karpov não permitiu que acontecesse com ele o que acontecera com Spassky.

Em meio a um batalhão da mídia, Korchnoi apareceu para a primeira partida com óculos de lentes espelhadas. Karpov reclamou que o reflexo nos óculos de Korchnoi estava atrapalhando a sua visão (“Os óculos eram como dois espelhos, e, quando Korchnoi levantava sua cabeça, a luz das numerosas lâmpadas sobre o tablado era refletida nos meus olhos”, descreveu Karpov em “From Baguio to Merano”). Mas os árbitros decidiram a favor dos óculos de Korchnoi.

Quatorze jogos depois, Korchnoi reclamou que Karpov estava girando a sua cadeira. O árbitro dirigiu-se a Karpov, que respondeu: “eu paro de girar, se ele tirar os óculos”. Mas a FIDE decidiu proibi-lo de girar a cadeira.

Não nos deteremos em cada questão ridícula aprontada por Korchnoi. Basta observar que o aparato montado em torno do desafiante, uma campanha de mídia que repetia a história de como a família de Korchnoi estava sendo perseguida na URSS - e ocultava o fato de que ele é que abandonara a família - acabou ruindo depois da descoberta de dois criminosos em sua entourage.

PROCURADOS

Eram dois pilantras, sempre vestindo batas indianas, que eram chamados de Dada e Didi. Os nomes verdadeiros eram Steven Dwyer e sua presumível mulher, Victoria Shepherd. Os dois americanos eram membros de uma seita indiana denominada “Ananda Marga” e estavam condenados a 17 anos de cadeia, por tentativa de assassinato. A seita, aliás, tinha um símbolo muito interessante: uma estrela de seis pontas tendo em seu interior um sol com uma suástica no centro.

Na 18ª partida, quando o score já estava em 4 a 1 para Karpov, Dada e Didi fizeram uma palhaçada na platéia, supostamente à guisa de meditação para neutralizar os poderes de Zukhar. Na partida seguinte, apesar da segurança filipina querer barrá-los, a FIDE deixou-os entrar mais uma vez.

Até o fim do match, que durou mais 14 partidas, a presença dos criminosos foi um elemento extra de tensão. O próprio “segundo” de Korchnoi, o GM Raymond Keene, demitiu-se em função da presença dos dois condenados (“eu declinei de qualquer pagamento pelo match vindo da parte de Korchnoi no prêmio e sugeri que ele doasse o dinheiro para seus gurus da Ananda Marga” - Keene, “Karpov-Korchnoi: Massacre in Merano”, Batsford, 1981).

Mesmo assim, Korchnoi não se separou deles, e nem a FIDE impediu sua ação, mesmo quando seu presidente, Florencio Campomanes, denunciou, após a 21ª partida, que sua esposa havia recebido um telefonema ameaçando-a de morte. Estranhamente, Campomanes parecia ter perdido o poder.

Enquanto isso, Korchnoi apareceu na 20ª partida vestido com uma bata indiana. Depois, promoveu uma entrevista coletiva em que Dada e Didi mostraram os exercícios de yoga que vinham ensinando ao seu patrão.

Não é espantoso que, em meio a essa confusão, Karpov tenha permitido que Korchnoi empatasse o match em 5-5 na 31ª partida. Porém, logo na partida seguinte, completou as seis vitórias que fechavam o match. A atitude de Korchnoi foi não reconhecer o resultado. Mas isso não tinha, também, a menor importância.

Três anos depois, em 1981, o desafiante seria outra vez Korchnoi. O que demonstra que, com exceção de Karpov, o xadrez soviético – e, de resto, o mundial – ainda não havia saído da entressafra.

Mas, desta vez, Korchnoi não teve a menor chance. Em apenas 18 partidas, o campeão conseguiu vencer seis, contra duas do desafiante.

ERRO

A recuperação do xadrez soviético devia-se, outra vez, ao fundador da escola soviética de xadrez. Juntamente com suas pesquisas na área da informática, onde se dedicara ao que, então, parecia impossível – elaborar um programa de computador que analisasse as posições no tabuleiro - Botvinnik havia fundado uma escola no sentido literal da palavra. Os dois próximos campeões mundiais seriam seus alunos, Karpov e Kasparov, além de vários outros grandes enxadristas da nova geração. Mesmo afastado das competições a partir de 1970 – e da disputa do título mundial a partir do início da década de 60 – ele continuava sendo o esteio do xadrez soviético. A falta de consideração mostrada para com ele era capaz de feri-lo, mas não de abatê-lo – em 1970, no match URSS x resto do mundo (um evento de que Botvinnik, com razão, não gostava), designaram para ele o oitavo tabuleiro.

Voltamos aqui à questão: por que Botvinnik resolveu ajudar Kasparov contra Karpov?

O historiador estoniano Valter Heuer relata uma entrevista que fez com Botvinnik em 1990. Nela, perguntou sobre as acusações de que o velho campeão teria “instigado” a suposta prisão de Keres. A resposta de Botvinnik foi que essa história fora abanada por Karpov quatro anos antes – portanto, em 1986 – numa entrevista ao jornalista alemão Bernd Nielsen-Stokkeby. Em “The Keres-Botvinnik Case”, Taylor Kingston cita as conclusões de Nielsen-Stokkeby, após pesquisar a acusação: “Eu considero que as palavras de Karpov são uma mentira”.

Resta saber porque Karpov mentiu – ou, talvez, tenha apenas repetido algo que ouviu. Mesmo assim, ele conhecia Botvinnik bastante bem – e devia muito a ele. Por que, então, fez essa declaração?

As datas não podem deixar de ser levadas em consideração. Teria Karpov dado a declaração ao jornalista alemão em função de seu ressentimento pela ajuda de Botvinnik a Kasparov?

Sabe-se que Karpov não foi um aluno fácil para Botvinnik. Durante os primeiros tempos, ele resistiu ao aprofundamento na teoria do xadrez, o forte de Botvinnik. E também a recíproca foi verdadeira: o jovem Anatoli Karpov, então com 12 anos, a custo suportou Botvinnik como professor. Este, segundo alguns, subestimava o aluno. Posteriormente, Karpov diria que o trabalho de casa passado por Botvinnik realmente o ajudou, forçando-o a consultar livros de xadrez e a ser mais disciplinado. Mas, nessa declaração está embutida uma certa crítica a Botvinnik, ao se referir especificamente ao “trabalho de casa” - e nenhuma palavra sobre as aulas e a escola propriamente dita.

Mas, terão sido esses precoces problemas entre Botivinnik e Karpov que determinaram a decisão de ajudar Kasparov – e a declaração posterior de Karpov? Não sabemos com certeza, mas nos parece que há algo de verdadeiro nisso. No entanto, como veremos, havia mais identidade entre Karpov e Botvinnik do que entre este e Kasparov.

Misérias e glórias do xadrez - parte 12

Retirado do site do grande jogador Hélder Câmara

O espírito de Spassky durante o match com Fischer pode ser bem aquilatado pela quinta partida (equivalente à sexta rodada, pois Fischer faltou à segunda). O norte-americano, que, quando jogava com as brancas, considerava um “princípio” começar pelo avanço do peão do rei, pela primeira vez na vida preferiu o chamado “gambito da dama” (a frase exata de Fischer, em seu livro de 1968, “My 60 Memorable Games”, é: “eu jamais comecei uma partida com o peão da dama – por princípio”).

Era um lance psicológico - no entanto, não pouco arriscado. Spassky, após seu match de 1969 com Petrosian, era considerado o maior conhecedor no mundo de uma das variantes dessa linha, a variante Tartakower (alguns enxadristas a chamam “sistema T.M.B.”, sigla que vem do nome de seus principais desenvolvedores: Tartakower, Makogonov e Bondarevsky). Mais do que isso, a reputação de Spassky era a de jamais haver perdido um único jogo com essa linha (e, até onde pudemos verificar, essa reputação era justificada).

Por outro lado, em 1968, em seu livro “My 60 Memorables Games”, comentando sua partida com o iugoslavo Bertok (ed. cit., pág. 207), Fischer havia publicado uma análise dessa linha - e a seguiu, na partida de 1972 com Spassky.

Mas, depois de entrar em sua linha favorita, o campeão escolheu um caminho já refutado, dois anos antes, por seu compatriota Semyon Furman, em um famoso jogo pelo campeonato soviético. Era impossível que Spassky não conhecesse essa partida e, mais do que isso, não conhecesse o estudo que Furman publicou na URSS sobre o tema. Praticamente todas as revistas soviéticas de xadrez haviam registrado a partida e a análise de Furman.

Porém, pior ainda, o oponente que Furman derrotou na partida de 1970 foi Geller, que em Reikjavik era, exatamente, o principal analista de Spassky. E, naquela altura dos acontecimentos, Geller também já havia analisado minuciosamente essa partida, em especial seu erro na 14ª jogada das negras – e descoberto uma alternativa, que aplicou com sucesso no ano seguinte, contra o holandês Jan Timman.

Mas Spassky, no entanto, repetiu, em 1972, o erro de Geller em 1970, como se tudo isso não existisse. E, frisamos mais uma vez, numa linha que era sua favorita – portanto, presumivelmente, sobretudo em se tratando de um jogador de seu nível, deveria estar interessado nas novidades a respeito dela, ainda mais quando as análises foram tão divulgadas.

Evidentemente, Spassky sabia de tudo isso. Sua derrota nesta partida não foi por ignorância, mas pelo estado psicológico em que se encontrava – e já na quinta partida, de um match programado para 24.

O ERRO

No entanto, o match não havia começado mal para Spassky. Na primeira partida, um erro de Fischer, tomando um peão desprotegido, lhe custou uma peça (um bispo) e dera a vitória ao campeão. Há muita coisa escrita sobre esse erro, aparentemente um erro crasso; a melhor análise, em nossa opinião, é a do próprio Fischer: segundo ele, simplesmente calculou errado, achando que o bispo poderia ser salvo depois de tomar o peão. O importante, aqui, é o motivo desse erro: Fischer, muitas vezes, tinha dificuldade em resistir a uma aparente vantagem material. Não por acaso, jogadores dispostos a sacrificar material (isto é, peões e peças) para obter uma posição melhor, ou um ataque, sempre foram, para ele, seus oponentes mais difíceis. O exemplo mais evidente é, naturalmente, Mikhail Tahl.

O que é revelador de um efeito da insegurança de Fischer. Por isso seu “calcanhar de Aquiles” eram as posições incertas. Ele necessitava estar seguro das seqüências e posições que surgiriam. Avaliações gerais não eram suficientes para ele. Porém, tanto no xadrez quanto em qualquer outro campo da vida, muitas vezes é necessário tomar decisões sem que se esteja completamente seguro da sua correção, e às vezes até pouco seguro. Era nesses momentos que Fischer tendia a fracassar – inclusive, como nessa primeira partida do match de 1972, tendia a cometer o que os americanos chamam de “blunder”, isto é, um erro crasso.

No entanto, muitos diriam que a posição em que ele cometeu esse erro na primeira partida não era incerta, mas uma posição empatada. Pelo menos quando jogou – e errou – Fischer, provavelmente, não tinha essa avaliação. Mas, vamos admiti-la, porque, do ponto de vista objetivo, ela é verdadeira. Aqui está outra debilidade de Fischer: a dificuldade em se conformar com situações em que não é possível ganhar. Ele não tinha problemas em empatar uma partida perdida – v. seus comentários à partida com Walther, em “My 60 Memorable Games”. Mas, não era tranqüilo diante de posições realmente empatadas. E, aí, ao forçar uma posição que não podia ganhar, a possibilidade de erro aumentava, como notou o mestre cubano Eleazar Jimenez-Zerquera, na análise de sua partida com Fischer na 15ª rodada do Memorial Capablanca de 1965.

É provável que Spassky fosse o jogador do mundo em melhores condições, do ponto de vista puramente enxadrístico, para colocar Fischer diante de situações do tipo das que mencionamos, em especial as do primeiro tipo. O problema é que não existe o “puramente enxadrístico”. Pelo menos não em jogos entre seres humanos.

Para vencer Fischer, Spassky teria que ser outro Spassky. Não outro enxadrista, mas outra pessoa. Diante de um oponente convicto – na época – de que era necessário “bater os russos pela América”, Spassky não estava convencido de que o lado em que estava, não o enxadrístico, mas o político, era o melhor. Isto, para dizer o mínimo. A impressão que ele passava – e ainda passa – é que achava o lado em que estava, pior do que o do seu oponente.

Não era verdade, mas isso, também, não é culpa de Spassky – ou, pelo menos, não é somente, ou inteiramente, ou fundamentalmente, culpa de Spassky. Afinal, era essa a cultura que vinha se gestando na URSS desde 1956. Toda a ideologia de “emulação com os EUA” (no momento em que a URSS estava, depois do Sputinik, tecnologicamente à frente!) conduzia ao rebaixamento soviético diante dos norte-americanos. E este é apenas um aspecto secundário da questão: por que, na cabeça de muitos soviéticos como Spassky, valeria a pena defender um país cuja história, na versão oficial, isto é, na versão de Kruschev, era uma história de crimes em massa? Somente muitos anos depois essa versão seria abalada – e, hoje, encontra-se em frangalhos, daí a nova onda de livros anti-comunistas sobre a história da URSS, que não seriam necessários, pois apenas repetem os anteriores, se não fosse para tentar costurar esses frangalhos.

Provavelmente, era pedir demais a Spassky que percebesse essas coisas, que na época não estavam claras nem para gente de muito mais responsabilidade do que ele.

Assim, Spassky entrou no match já derrotado. Não enxadristicamente derrotado, mas ideologicamente derrotado, numa guerra em que o xadrez era a forma sob a qual se travava uma batalha ideológica.

MEMORIAL

Pretextando a presença de câmeras de televisão, Fischer não compareceu à segunda partida do match. Não voltaremos, aqui, à questão da interferência de Kissinger, já abordada na parte anterior, nem nos deteremos em todas as miudezas levantadas ou provocadas por Fischer durante o match. Que Spassky haja se abalado tanto com elas, apenas demonstra o quanto ele já entrou batido nessa luta.

Para tornar sua situação mais complicada, houve uma série de desastres na preparação para o match. O maior deles, em nossa opinião, foi a realização, em novembro de 1971, de um torneio público, o Memorial Alekhine (logo com esse nome, e nessa hora!) com alguns dos principais jogadores soviéticos e de outros países – inclusive o americano Robert Byrne e o islandês Olafsson, conhecido amigo de Fischer. A atuação de Spassky, que chegou em sexto lugar (aliás, sétimo, pois, pelos critérios de desempate, Tahl acabou em sexto), somente serviu para fornecer uma demonstração pública de fraqueza. Mais ainda porque Petrosian, derrotado por Fischer no mês anterior, ficou em quinto lugar. Se os responsáveis pela preparação de Spassky queriam espargir um pouco de sangue para estimular o apetite dos tubarões, dificilmente encontrariam forma melhor. Se queriam esmagar psicologicamente o próprio jogador que preparavam, também seria quase impossível idéia mais brilhante.

Não por acaso, o chefe da preparação de Spassky era Alexander Kotov. Eis uma personalidade muito pouco abordada nos livros sobre história do xadrez. Já conhecemos (v. parte 6 deste artigo) o relato de Botvinnik, de como, nas Olimpíadas de Munique, Kotov, capitão da equipe soviética, tentou impor a ele, então campeão mundial, a submissão ao desejo americano de que pontuasse em branco contra Reshevsky.

Como jogador, o prestígio de Kotov era devido principalmente à sua vitória no Interzonal de Estocolmo, em 1952, a maior diferença de um primeiro colocado num Interzonal até que Fischer, em Palma de Mallorca, batesse o recorde por meio ponto. Mas, no ano seguinte, ficara em oitavo lugar no Torneio de Candidatos de Zurique, embora tenha sido o único a ganhar uma partida do vitorioso naquele torneio, Vassily Smyslov.

É verdade que seu prestígio era sombreado por uma história, segundo a qual tentara subornar o GM Alexander Tolush no campeonato soviético de 1945, não conseguindo o seu intento – Tolush ganhou a partida contra Kotov, o que fez com que este perdesse o terceiro lugar (acabou em sexto). Segundo outra versão, teria sido Tolush a oferecer-se para ser subornado, com o que concordou Kotov, mas não aceitou o preço - o total do prêmio correspondente ao terceiro lugar. Na duas versões, o papel de Kotov não é propriamente edificante.

Como autor, Kotov era responsável pela tentativa - aliás, bem sucedida após 1956 - de reabilitar Alekhine na URSS, com quatro volumes de uma alentada biografia enxadrística.

Porém, as obras mais conhecidas de Kotov são “Pense como um Grande Mestre” e “Jogue como um Grande Mestre”, os dois primeiros volumes de uma trilogia que se encerrou com o menos conhecido “Treine como um Grande Mestre”. Sobre este último livro, não podemos dar uma opinião, pois não o lemos. Os outros dois nos parecem exemplares daquilo que Lenin, falando de Bukharin, chamou de “pensamento escolástico”, ou seja, não dialético. Se os GMs raciocinassem apenas daquela forma, ou essencialmente daquela forma, o xadrez seria um jogo muito chato. Até mesmo o GM inglês John Nunn, autor que está mais longe da dialética e do comunismo que Bobby Fischer, notou a fragilidade da concepção de Kotov (cf. Nunn, “Secrets of Practical Chess”, Gambit Publications, 1998, págs. 7 e seguintes). Além disso, como observou um jogador brasileiro, Kotov parece ignorar, e mesmo desprezar, toda a dimensão psicológica do xadrez, o que não é pouca coisa, em se tratando de um livro sobre xadrez.

A partir do final da década de 50, Kotov tornou-se um dos principais dirigentes da Federação de Xadrez da URSS. Ao que parece, ele deu-se muito bem com as mudanças que ocorreram no país a partir dessa época.

Como chefe da preparação de Spassky, ele foi autor de algumas das mais arrogantes e histéricas declarações dessa época. Mas nada se comparou à idéia de colocar Spassky no Memorial que homenageava o ídolo de Kotov, Alekhine. Ao que parece – mas disso não temos certeza, embora nos pareça provável – ele foi um obstáculo a que Spassky levasse Geller como seu “segundo” para Reikjavik. E, nesse caso, a escolha de Spassky era inteiramente correta. Aliás, era a melhor possível: Geller não somente era um dos mais capazes analistas da URSS, respeitado pelo próprio Botvinnik, como era, também, um dos poucos jogadores que tinham derrotado Fischer - nada menos do que 5 vezes (contra 3 derrotas e 2 empates), e conseguira esse resultado jogando sempre as linhas favoritas de Fischer, ou seja, lutando no terreno do oponente.

KARPOV

Nesse sentido, Spassky foi capaz, em 1972, de uma partida brilhante, a 13ª do match, onde arrasou Fischer em 31 movimentos, usando a famosa Variante Gotemburgo da Defesa Siciliana (hoje conhecida como “variante do peão envenenado”), desenvolvida primeiramente pelos soviéticos, mas colocada em evidência pelo norte-americano desde 1961.

No entanto, num confronto que não era fundamentalmente enxadrístico, ganhou o lado mais decidido a derrotar o outro – Fischer venceu 7 partidas, empatou 11 e perdeu três, uma delas por W.O., fechando o match na 21ª partida.

Nos anos que se seguiram, a ascensão de Anatoli Karpov no xadrez mundial, sua vitória em 1974 nos matches contra Polugayevsky, Spassky e Korchnoi, a série de exigências de Fischer para disputar o título com Karpov, a aceitação da FIDE de quase todas essas exigências, e mesmo assim a recusa do campeão em enfrentar o desafiante, são fatos demasiado conhecidos para que tenhamos de nos debruçar sobre eles.

Não pretendemos analisar em profundidade os motivos de Fischer para não defender seu título. Faremos apenas uma observação: em quase todos os relatos sobre essa época, ressalta-se o medo pânico que Fischer tinha de perder, após a conquista de 1972.

Parece-nos que este medo existia, como existia antes do título – e, no entanto, nos momentos decisivos, Fischer sempre conseguiu encontrar forças para superá-lo. Além disso, não nos parece indiscutível que Karpov estivesse em condições de derrotar Fischer num match já em 1975. Embora, a verdade é que esta é uma daquelas questões para as quais cabe o verso de T. S. Eliot: “o que poderia ter sido é abstração”.

Portanto, em nossa opinião, há outro elemento - que, em geral, é subestimado, e, na maior parte das vezes, totalmente omitido.

Fischer havia empreendido a caça ao título, fundamentalmente, para, nas palavras do sutil Henry Kissinger, “bater os russos pela América”. E ele o tinha feito, não pela América, mas pelo establishment dos EUA. Três anos depois, é difícil considerar que essa motivação continuava a existir com a mesma intensidade. Nesse intervalo, houve Watergate, a queda de Nixon e Kissinger, os escândalos da CIA e a revelação de como os EUA estavam agindo no Vietnã.

No mesmo intervalo, Fischer havia se reaproximado da mãe, Regina, que não era propriamente, como já vimos, uma ardorosa defensora do status quo, muito pelo contrário. Não que tenha sido Regina a influenciá-lo a não disputar o título. Ao inverso, nos parece que foi o desencanto de Fischer com o uso de sua conquista pelo establishment, que fez com que ele se reaproximasse de sua mãe.

Se Spassky, três anos antes, tinha dúvidas sobre se valia a pena lutar pela URSS, agora era Fischer que não via grandes razões para empenhar-se em lutar por algo que já não lhe parecia a mesma coisa daquela época em que recebeu o telefonema de Kissinger.

Misérias e glórias do xadrez - parte 11

Retirado do Site do grande jogador Hélder Câmara

Nosso relato da trama que permitiu a Fischer enfrentar Spassky não tem, evidentemente, o objetivo de negar que ele fosse - e, provavelmente, ainda seja - um grande enxadrista, dos maiores que já existiram. Porém, as regras têm de valer até para os melhores – mesmo para o melhor do mundo. Aliás, sobretudo para este. Caso contrário, instaura-se o vale-tudo e, se nos permitem as senhoras e senhoritas que nos lêem, segue-se o popular pega-pra-capar.

O atropelo das regras, por razões puramente políticas, extra-enxadrísticas, para colocar Fischer como candidato ao título foi mais um prego no caixão da estrutura estabelecida após a morte de Alekhine, em 1946. Naturalmente, era possível aperfeiçoar e mesmo mudar, se fosse necessário, aquela organização, desenhada fundamentalmente por Botvinnik. Desde que fosse para outra. Mas o rumo a partir do final da década de 50 não levava a outra estrutura, fosse melhor ou pior – levava a nenhuma, como ficou claro em 1993, quando Kasparov resolveu passar por cima, não mais das regras, mas da própria FIDE, com as conseqüências que até hoje não foram inteiramente superadas.

É necessário ressaltar, porém, que a anarquia implantada nos anos 90 – que tem relação direta com aquilo que se chama “a anarquia do mercado” - só foi possível porque a FIDE havia, no correr dos anos, atingido um grau de desmoralização que lhe tornou impossível resistir ao ataque daqueles a quem ela havia cedido paulatinamente durante 35 anos: basicamente, a cúpula e a mídia dos países centrais, que agora sustentavam Kasparov contra a FIDE.

O atropelo dos anos 70 foi, portanto, um prego no caixão da própria FIDE – que somente a partir de 2005, com o Torneio de San Luís, conseguiu algum sucesso em suas manobras de ressuscitação.

A semente desse estado de caos e desmoralização havia sido plantada pelas interferências em função da mal chamada “guerra fria” - facilitadas pela defensiva dos soviéticos, a chamada política de apaziguamento, inaugurada por Kruschev. Porém, esta semente não conseguiu cair em solo fértil logo no início do plantio. Pelo contrário, para isso foram necessários mais de 30 anos de adubagem – começando pela revogação do direito ao match-revanche, pela abolição do torneio de candidatos e, com destaque, para a forma como Fischer chegou a campeão mundial.

KISSINGER

No artigo de Al Lawrence que já mencionamos, um dos relatos mais importantes de Leroy Dubeck, presidente da Federação de Xadrez dos EUA (USFC) de 1969 a 1972, é o de que “foi um telefonema do Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Nixon, Henry Kissinger, que colocou Fischer em posição de sentido. ‘O Dr. Kissinger disse a Bobby que ele devia derrotar os russos pela América’, disse Dubeck. ‘A face de Fischer foi subitamente tomada por um olhar de determinação, como se ele estivesse indo para uma batalha’. Bobby seguiu para cumprir sua missão” (cf., Al Lawrence, “Fischer: fame to fallout”, Chess Life Magazine, 09/2007).

Não é muito difícil, diante disso, compreender o ressentimento atual de Fischer com os EUA, depois que seus bens – inclusive os direitos autorais de seus livros – foram confiscados e sua prisão foi decretada pelo governo americano por ter rompido o bloqueio à Iugoslávia, medidas totalmente ilegais, baseadas apenas numa “ordem executiva” de Bush, o pai. Fischer, aliás, tem bastante razão quando diz que, antes que vencesse o match pelo campeonato do mundo, os EUA eram conhecidos como “um país do baseball ou do futebol americano”, esportes, digamos assim, de prestígio intelectual menor do que o xadrez. Para ser rigoroso, de prestígio, inclusive intelectual, menor do que o futebol que nós criamos a partir do que antes era o “rude esporte bretão”...

Lawrence localiza o telefonema de Kissinger nos momentos que antecederam a ida de Fischer para Reikjavik, onde foi o match com Spassky. E, pela forma como conta a história (“a face de Fischer”, etc.), Dubeck estava presente. No entanto, no relato deste, não há menção ao momento desse telefonema.

Certamente, as coisas podem ter acontecido do modo como diz Lawrence. Mas não é provável que isto seja tudo. Havia, sem dúvida, dificuldades de última hora, colocadas por Fischer, para viajar à Islândia. Mas, nesse momento, Fischer já havia vencido o Interzonal de Palma de Mallorca, já havia batido, por um placar inédito (6 a 0), dois outros candidatos a desafiante (Taimanov e Larsen), já havia derrotado Petrosian, último concorrente no seu caminho para chegar ao match com o campeão – e, para completar, Spassky já havia, no Torneio Memorial Alekhine, que os soviéticos, desastradamente, organizaram para sua preparação, chegado em sexto lugar. Não havia outro momento melhor para que ele chegasse a campeão do mundo.

Kissinger pode muito bem haver telefonado nesse momento, e deve tê-lo feito. Mas dificilmente foi o seu primeiro contato com a questão – e, de resto, com Fischer. Até porque suas funções como “conselheiro de segurança nacional” eram, sobretudo, as de coordenação da CIA e outros aparelhos semelhantes, como se tornou evidente um ano depois, no sanguinário golpe contra o presidente Allende, no Chile. Seja como for, sua interferência é a hipótese mais provável para a mudança de Fischer após o campeonato dos EUA, sua súbita decisão de aceitar as irregulares gestões para colocá-lo no Interzonal de Palma de Mallorca.

Nos detivemos especificamente nessa questão porque os telefonemas de Kissinger, recentemente, foram matéria de polêmica, depois do lançamento de “Bobby Fischer Goes to War”, dos ingleses David Edmonds e John Eidinow, em 2004. O livro é bem característico de certo tipo de jornalistas – não necessariamente ingleses ou norte-americanos: um pires de superficialidade com uma coleção de preconceitos anticomunistas. Entretanto, mesmo para essa espécie de obra, os dois autores são muito exagerados: até mesmo o “Washington Post”, numa resenha assinada por Andrew Meier, não conseguiu deixar de, pelo menos de passagem, registrá-lo.

A documentação de “Bobby Fischer Goes to War” é bastante débil. Por exemplo, a KGB é acusada de cobras e lagartos, sem que nenhum documento dos seus arquivos (abertos desde 1992, portanto, 12 anos antes da publicação do livro) seja sequer mencionado. Mas, no livro, são relatados dois telefonemas de Kissinger para Fischer. Um deles antes da viagem para Reikjavik, que parece ser o mesmo citado por Dubeck, e outro depois da segunda partida do match – à qual Fischer, derrotado na primeira partida, não compareceu, arriscando-se a ser desclassificado, não fosse a complacência infinita da FIDE. Quantos outros telefonemas ou contatos do governo americano com Fischer houve nessa época, é questão que ainda não é clara.

Totalmente claro é que o coronel Ed Edmonson se transformou num verdadeiro controlador de Fischer nessa época. Quando não conseguia controlar, como nos dois casos citados, apelava para instâncias mais acima.

TURBILHÃO

Fischer venceu o Interzonal de Palma de Mallorca com 18,5 pontos, uma diferença excepcional de 3,5 pontos em relação aos segundos colocados - o dinamarquês Bent Larsen, o soviético Efim Geller e o alemão ocidental Robert Hubner. Além desses, saíram classificados do Interzonal, para disputar os matches com os candidatos já pré-classificados (Petrosian e Korchnoi), o soviético Mark Taimanov e o alemão oriental Wolfgang Uhlmann. A única derrota de Fischer havia sido para Larsen, durante a nona rodada. Como a maioria dos jogadores estratégicos (“posicionais”), como Capablanca ou Botvinnik, Fischer podia ser surpreendido, numa partida de torneio, por um jogador tático, como Larsen. Num match, este não perderia por esperar...

Esse resultado de Fischer seria apagado da memória de todos apenas cinco meses depois, quando, no match das quartas de final, derrotou o GM soviético Mark Taimanov por 6 a 0 (ou seja, num match previsto para 10 partidas, venceu seis partidas seguidas, sem nenhum empate e sem nenhuma derrota), um resultado completamente espetacular em confrontos entre Grandes Mestres.

Taimanov, também um grande pianista clássico, não tinha, até pela idade – 45 anos – condição de enfrentar Fischer num match. Na verdade, seu auge havia sido na década de 50. O fato de ter saído do Interzonal como um dos candidatos soviéticos, demonstra, mais uma vez, os problemas de renovação que o xadrez da URSS enfrentava na época.

O próprio Taimanov, ao descrever a terceira – e decisiva – partida do match, fornece uma descrição das dificuldades, e, antes de tudo, da intimidação dos jogadores soviéticos diante de Fischer: “O terrível sentimento de que eu estava jogando contra uma máquina que nunca cometia qualquer erro quebrou minha resistência. Fischer jamais permitia alguma debilidade em sua posição, ele era um defensor incrivelmente tenaz. (....) Depois de uma bela seqüência tática, coloquei meu oponente diante de sérios problemas. Numa posição que eu considerei ganhadora, não pude achar um caminho para romper suas defesas. Para cada idéia promissora, eu achava uma resposta para Fischer. Fiquei profundamente absorvido em pensamentos, que não produziram resultado positivo algum. Frustrado e exausto, eu evitei a linha crítica no final e perdi o fio do jogo, o que, em conseqüência, levou à minha derrota. Dez anos depois, pelo menos eu descobri como poderia ter vencido esse jogo fatal, mas, infelizmente, isso não tinha mais nenhuma importância” (entrevista de Taimanov ao GM francês Joel Lautier, Chessbase, 23/05/2002 – NOTA para os não enxadristas: “linha crítica” é aquela na qual, teoricamente, os dois lados realizam as melhores jogadas possíveis em cada posição que surge).

Fischer, havia muito, respondera a essa acusação (feita pela primeira vez, num acesso de ranzinzice, por Botvinnik) do seu jeito: “Não sou uma máquina. Sou apenas um homem, mas um homem extraordinário”.

Mas ele era um jogador muito preciso – Taimanov ressalta, corretamente, seus méritos como defensor, quando, geralmente, ele é conhecido como um jogador de ataque. No entanto, Fischer se arriscava pouco – como Capablanca, com quem foi comparado por Spassky, ele gostava de posições claras e seqüências rigorosamente lógicas.

Fischer tinha, porém, como todo jogador, seu calcanhar de Aquiles: as posições incertas, em que é difícil calcular as seqüências de jogadas e avaliar as posições que sairão delas. Ao contrário de Tahl - e, inclusive, de Smyslov - a intuição jamais foi a sua praia. O problema, como na época de Capablanca, é que havia muito poucos jogadores no mundo que conseguiam criar posições “incertas” jogando contra Fischer. Um deles, o citado Mikhail Tahl, não era candidato ao título (acometido por seus problemas de saúde, ficara em 15º lugar no campeonato soviético de 1969, não conseguindo vaga para o Interzonal). Mas havia outro que já demonstrara essa capacidade: Boris Spassky, o campeão mundial, detentor de um retrospecto de três vitórias, dois empates e nenhuma derrota contra Fischer.

LARSEN

Embora isso não tenha sido enfatizado na época, era evidente que o sistema de matches favorecia Fischer, assim como o antigo sistema, o Torneio de Candidatos, era-lhe menos favorável. Não pelas razões que Fischer havia apontado em 1962. Enfrentar um só jogador várias vezes seguidas, para uma mente como a de Fischer, capaz de um vasto conhecimento das partidas do oponente, mas com repertório de aberturas razoavelmente restrito - ainda que alcançasse profundidade incomum em cada uma de suas linhas favoritas -, era um terreno mais fácil do que enfrentar oponentes diferentes a cada dia, com suas distinções de estilo e várias especialidades. O que não quer dizer que ele não pudesse, no início dos anos 70, sair vencedor num torneio de candidatos. Mas não deixa de ser verdade, por outro lado, que para jogadores mais velhos os matches são particularmente desgastantes.

Nos outros matches das quartas de final, Korchnoi venceu Geller, Larsen venceu Uhlmann e o ex-campeão Tigran Petrosian venceu Hubner. Nas semifinais, enfrentar-se-iam Fischer contra Larsen e Petrosian contra Korchnoi.

Muito poucos jogadores na história conseguiram os resultados de Bent Larsen: quatro vezes candidato a desafiante do campeão, Larsen foi primeiro colocado em três Torneios Interzonais (Amsterdã, em 1964; Sousse, em 1967; e, depois dos acontecimentos que estamos relatando, Biel, em 1976). Com exceção do próprio Fischer, ele era o mais forte jogador ocidental. Apesar disso, sua escolha de linhas pouco comuns – e, sobretudo, duvidosas – assim como seu retrospecto contra Fischer (5 derrotas, 2 vitórias e 1 empate), não prometiam uma surpresa contra o norte-americano.

Porém, assim mesmo, houve uma surpresa: o que se viu foi um massacre, o segundo em poucos meses. Fischer venceu outra vez por 6 a 0. Aqui, permitam-nos os leitores emitir uma opinião, sem dúvida discutível: Larsen nunca foi um jogador sólido, o que, do nosso ponto de vista, é uma função da profundidade do pensamento. A escolha excêntrica de aberturas escondia – ou, talvez, expunha – essa falta de profundidade.

Certas escolhas de Larsen mostram um evidente decolamento da realidade. Um fenômeno, aliás, ao qual ele nunca foi estranho – basta ver suas explicações para a derrota, em que, parece, ele acredita que o culpado foi o clima de Denver, onde se realizou o match (“Os organizadores escolheram a época [do ano] errada para esse match. Eu estava lânguido com o calor e Fischer estava melhor preparado para tais circunstâncias...”) ou sua subestimação de Capablanca (“apenas jogava bem xadrez. E daí?”), que mostra o quanto ele não conseguia se desligar do meramente espetaculoso.

PETROSIAN

Petrosian era um jogador de qualidade diferente de Taimanov e Larsen. Não por acaso – e contra um suposto favoritismo de Korchnoi – havia chegado ao match final dos candidatos. É verdade que já havia conquistado em xadrez todas as glórias possíveis. Exceto, naturalmente, ser campeão por uma terceira vez. Mas essa ambição, em si, parece jamais tê-lo mobilizado. Apesar disso, estava na final e seria um oponente mais difícil para Fischer do que qualquer um dos anteriores.

Logo na primeira partida, Petrosian refutou uma das linhas favoritas de Fischer, seguindo um estudo realizado por jogadores soviéticos, e ficou claramente melhor no tabuleiro. Foi então que aconteceu um fato único nos campeonatos mundiais: as luzes do Teatro General San Martín, em Buenos Aires, se apagaram. Os árbitros, então, paralisaram os relógios. Mas Fischer insistiu em continuar, no escuro, a análise da posição. Os árbitros permitiram. Quando as luzes se acenderam, a partida continuou de uma forma inusitada: o melhor atacante do xadrez mundial se defendendo com unhas e dentes e, atacando, estava o melhor defensor da história do xadrez. Mas o tempo foi fatal para Petrosian: com poucos segundos para terminar, ele erra - e Fischer acaba por ganhar a partida.

Mas, na segunda partida, Petrosian envolve o rei de Fischer numa perseguição que acaba no 32º lance. O score está igualado.

Na terceira, Petrosian outra vez consegue vantagem, mas Fischer escapa da derrota através de um empate por repetição de jogadas.

Na quarta partida, insolitamente, é Fischer quem oferece empate após alguns poucos lances. Seu conhecido espírito de luta parece arrefecido.

Na quinta, depois de recusar o empate proposto por Petrosian, Fischer, logo em seguida, propõe o mesmo, que é aceito. Larry Evans, um dos “segundos” de Fischer, fez, então, um comentário revelador: “Petrosian está fazendo com que Bobby jogue o tipo de xadrez que ele joga”,

Porém, na sexta partida, Petrosian joga mal, erra, e Fischer vence. O cansaço e a progressiva exaustão começam a ser fatores de peso - contra o soviético. Esse era, frisamos, o terceiro match que os jogadores disputavam no espaço de poucos meses (entre maio e setembro de 1971). E Petrosian tinha 14 anos a mais do que Fischer.

A definição viria na partida seguinte – a decisiva do match. Fischer finalmente faz uma partida convincente e derrota Petrosian. Daí por diante, o cansaço e os problemas de saúde do soviético tornaram fácil para Fischer vencer mais duas partidas e fechar o match com 5 vitórias, uma derrota e três empates.

Com isso, só faltava Spassky no caminho de Fischer. Apesar de todos os seus problemas, o campeão não era um jogador fácil de derrotar, mesmo para Fischer.