sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Site do Hélder Câmara

http://www.hcamara.com.br/

Site do grande jogador brasileiro Hélder Câmara. Material de estudo vasto, contendo textos, partidas comentadas, atualidades e arquivos referentes ao enxadrismo.

Extremamente indicado.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Misérias e Glórias no Xadrez - Parte 10

Retirado do site de Hélder Câmara

A manobra era totalmente irregular: Fischer não havia participado do Campeonato dos EUA de 1969, que era ao mesmo tempo o torneio zonal que escolhia os participantes americanos no Interzonal de Palma de Mallorca. Portanto, não podia ir ao torneio e não podia estar entre os possíveis candidatos ao título mundial. No campeonato norte-americano, três jogadores haviam se classificado para o Interzonal: Reshevsky, Addison e Benko - naturalizado americano depois que, em 1958, abandonou a equipe da Hungria no Campeonato Mundial Estudantil por Equipes, na Islândia.

Pela desistência da vaga no Interzonal, Benko recebeu a módica quantia de US$ 2.000 da Federação de Xadrez dos EUA (USCF). É quase inevitável o pensamento de que os desertores do Leste europeu eram muito baratos...

Benko, a julgar pelo incidente de 1962, no Interzonal de Curaçao, onde esmurrou seu colega de delegação, não era exatamente um amigo de Fischer. (Depois, Benko tentou fazer o papel, e talvez realmente tenha melhorado suas relações com Fischer. Porém, falar a verdade jamais foi um mandamento para ele: Benko demorou cinco anos para desmentir que tivesse recebido dinheiro para desistir do Interzonal, o que fez em julho de 1975 na "Chess Life & Review", onde afirmou que os US$ 2.000 eram referentes a serviços como "segundo" de Reshevsky e Addison. O que não impediu que o presidente da USFC na época do pagamento, Leroy Dubeck, assim como um ex-diretor-executivo da entidade - isto é, o tesoureiro de facto - reafirmassem posteriormente que o dinheiro foi em troca da desistência).

EDMONSON

Ainda não é totalmente claro como foram as articulações para colocar Fischer no Interzonal. O fato é que desde antes do Campeonato dos EUA (novembro de 1969), o manda-chuva da USCF, coronel Ed Edmonson, fazia gestões para ter Fischer como candidato ao título, o que não havia feito no Interzonal de Sousse, nem quando o jogador norte-americano, apesar de estar à frente dos concorrentes, ameaçou abandonar o torneio - e, depois, cumpriu a ameaça.

Porém, dessa vez Edmonson, um "oficial de inteligência" da Força Aérea, tentou convencer Fischer - a correspondência entre os dois é hoje pública – a participar do campeonato americano, onde seria, certamente, classificado para o Interzonal: desde 1957, Fischer somente não havia sido campeão dos EUA nos anos em que não participou do campeonato.

Antes que apareçam acusações de que estamos possuídos por uma "visão conspirativa da história" (como se as conspirações, as verdadeiras, não existissem na luta política, e, portanto, na História), esclarecemos que o coronel Edmonson realmente interessava-se por xadrez. É verdade que a única partida que conhecemos dele é medíocre, mais ainda considerando as condições em que foi jogada: numa simultânea contra Koltanowsky, em que este, "às cegas" (ou seja, sem tabuleiro, apenas com a memória), enfrentou 56 jogadores. Mas, dirigentes de entidades, sejam de xadrez ou de futebol, não necessitam ser bons jogadores - senão, o Duailibe e o Eurico Miranda não poderiam chegar a presidentes do Corinthians e do Vasco.

No entanto, parece que havia alguma razão além das enxadrísticas para que um "oficial de inteligência", um coronel aposentado da Força Aérea, tenha se tornado presidente da USCF, e, depois de encerrado o seu mandato, tenha assumido um cargo criado especialmente para ele – o de "diretor-executivo" - com poderes reais acima da autoridade formal do presidente.

Não se trata de uma especulação, ou de mera opinião. Vejamos o que diz um dos sucessores de Edmonson na "diretoria-executiva" da USCF, Al Lawrence, em artigo publicado na edição de setembro último da revista da entidade, "Chess Life Magazine".

Lawrence lembra que, pelas regras, era "irremediável" (sic) que Fischer não podia participar do Interzonal de Palma de Mallorca. E, continua: "O mais importante é que não havia dispositivo algum do estatuto da USFC que permitisse substituir por Fischer um dos legitimamente classificados. Dubeck e Edmonson tiveram que engendrar a criação de uma regra que permitisse isso. Eles, então, pagaram US$ 2.000 ao GM Pal Benko para sair fora. Além disso, tiveram que fazer uma artimanha política na FIDE para ganhar o controle da diretoria (....). Dubeck é rápido em dar todo o crédito às bem sucedidas estratégias fora do tabuleiro de Edmonson, um coronel aposentado da Força Aérea" (cf., Al Lawrence, "Fischer: fame to fallout", Chess Life Magazine, setembro/2007 - grifos nossos).

A "artimanha" para controlar a diretoria da FIDE foi um encontro clandestino de Edmonson e Dubeck com um delegado soviético. Segundo o depoimento de Dubeck a Lawrence, esse delegado queria "fazer um acordo com Edmonson". Por quê com Edmonson e não com Dubeck, que era o presidente da USFC?

Não era apenas porque todos sabiam que quem mandava na USFC era Edmonson. A questão é que este era quem tinha as ligações subterrâneas, ou seja, com os órgãos de espionagem norte-americanos. Caso contrário, não poderia saber - como Dubeck, até então, não sabia - que havia um delegado soviético querendo "fazer um acordo".

É o que explica que Dubeck acrescente que o obstáculo para realizar o acordo era a KGB. Segundo ele, o intérprete do delegado soviético era um agente da KGB (no original, "um reputado assassino da KGB" - para certos norte-americanos, isso é a mesma coisa que "um agente da KGB"; que diabo estaria fazendo nessa história um "assassino"? Que utilidade teria? Essa questão não parece ter ocorrido a Dubeck; mas Edmonson sabia, como veremos, que esse "assassino" servia apenas para contemplar a fantasia e os escrúpulos de Dubeck - cobrindo um ato de corrupção com uma capa de ato heróico).

"Edmondson treinou Dubeck sobre o que fazer". Quando se encontraram com o delegado soviético e seu intérprete, no ponto marcado pelo primeiro, "Dubeck subitamente puxou o perplexo agente para dentro de uma loja de roupas, insistindo em obter o conselho do russo sobre uma compra. Não se preocupe, Edmonson havia dito a Dubeck, é improvável que ele se arrisque a matar o presidente da USCF. ‘E funcionou’, disse Dubeck a Lawrence, "eu tirei o agente da KGB do caminho e Ed fez o acordo. Ele foi eleito para a diretoria da FIDE, e, desde que devia sua posição a nós, seu voto estaria à disposição mais tarde’". (Al Lawrence, art. cit.).

O que há de verdade nessa história, não sabemos. O ilustrativo nesse relato é o papel de Edmonson. Qualquer semelhança com um agente da CIA, NSA ou agências semelhantes não parece ser mera coincidência.

Dubeck não parece um mentiroso. Pelo contrário, o que conta é muito comprometedor, inclusive para ele, e sempre relata os acontecimentos da maneira que se esperaria, isto é, naquele estilo algo elíptico que se tornou uma característica do fariseu norte-americano, e que alguns ingênuos, por mimese, também acabaram por adotar. Por exemplo, sobre os telegramas que enviou a Max Euwe (o ex-campeão substituíra Rogard como presidente da FIDE) a respeito da participação de Fischer: "Alguns deles não eram, devemos dizer, completamente honestos".

Não há como saber, com os dados disponíveis, se era realmente o suposto soviético "da KGB" que Edmonson queria afastar, para que pudesse fazer o acordo com o outro. Pois, se há algo estranho no relato de Dubeck é um soviético que - em linguagem sem rebuços - queria trair, comparecer a um encontro clandestino com dois americanos, levando, ou sendo acompanhado ostensivamente, por um agente da KGB. Quase tão estranho é os dois americanos comparecerem a esse encontro. Será que o suposto "agente da KGB" era mesmo quem Edmonson queria afastar do encontro com o delegado soviético? Ou era Dubeck quem ele queria que não tomasse conhecimento do acordo? Pois o presidente da USCF somente soube do acordo através de Edmonson. Não estava presente quando foi fechado, pois estava ocupado em impedir que o suposto "assassino", que mais parecia um dos Três Patetas do que um agente da KGB, continuasse grudado no delegado soviético... Mas, com esse ato indômito, para o qual tinha sido "treinado" por Edmonson, também Dubeck ficou fora do encontro.

Nos parece difícil que um delegado soviético na FIDE votasse contra a posição da Federação de Xadrez da URSS, assim como qualquer delegado em relação à posição de sua federação nacional. Mas talvez não fosse necessário: a postura dos soviéticos já era demasiado conciliadora. Dubeck está se referindo, nesse caso, a impedir que alguma atitude inusitada de Fischer provocasse sua desclassificação pela FIDE. Assim, o suborno de um delegado soviético seria uma tentativa de conseguir uma garantia a mais de que o plano para derrotar a URSS não viesse por água abaixo devido a alguma atitude antiesportiva do seu próprio jogador. Além do que, é bom lembrar, os membros da diretoria da FIDE não teriam tempo de consultar sua federação a respeito de quaisquer questiúnculas levantadas por Fischer. Sobretudo numa época em que as comunicações de longa distância eram feitas pelo antigo telefone e pelo telégrafo, eles teriam alguma autonomia para decidir as várias - e foram inúmeras - questões levantadas.

Sobre isso, é interessante uma observação de Dubeck, em seu depoimento para Al Lawrence, sobre a atitude do presidente da FIDE: "Ele devia ter desclassificado Fischer, mas não o fez".

ENTRESSAFRA

Em resumo, o xadrez não parece ter sido, desde cedo, uma área negligenciada pelo establishment dos EUA no confronto com a URSS.

O que não se sabe - ou, melhor, nós não sabemos - é até que ponto a ação de Edmonson, no início, estava articulada com escalões mais altos do governo e dos órgãos de "inteligência" americanos. É possível que tenha sido ele o primeiro a perceber que os norte-americanos, diante da entressafra que acometia o xadrez soviético, tinham, afinal, uma chance de golpear o prestígio da URSS numa área onde ele jamais havia sido abalado, apesar de todas as renitentes tentativas anteriores.

Mas também é possível que essa situação tenha sido avaliada primeiramente em nível mais alto. Afinal, entre os 200 mil funcionários que, segundo o Congresso dos EUA, havia na CIA e órgãos congêneres nessa época, devia haver algum, ou alguns, que estavam dedicados a analisar a situação no xadrez soviético e podiam perceber o que estava acontecendo: Botvinnik já havia se retirado das competições; Keres, Petrosian, Smyslov e Geller não tinham, até pela idade, condições de se opor a Fischer; Tahl apresentava uma saúde demasiado frágil; e Korchnoi, cada vez mais histérico, não era um competidor sério.

Porém, havia à disposição dos norte-americanos algo ainda mais concreto do que essa avaliação geral.

O campeonato soviético de 1969 ocorreu em Moscou, entre 6 de setembro e 12 de outubro daquele ano. Já o campeonato dos EUA aconteceu em Nova Iorque, de 30 de novembro a 17 de dezembro. Ambos valiam como torneios zonais, ou seja, classificavam jogadores do país para o Interzonal de Palma de Mallorca que, por sua vez, decidiria seis dos candidatos a desafiante de Spassky, além de Petrosian e de Korchnoi, que já estavam classificados, o último por ter sido finalista nos matches entre candidatos do campeonato anterior).

Portanto, quando o coronel Edmonson deu a partida para o campeonato norte-americano, já sabia quem eram os jogadores soviéticos que haviam sido qualificados para o Interzonal: Smyslov, Polugayevsky, Taimanov e Geller.

O primeiro, pela idade e pelo retrospecto desfavorável (5 derrotas, 5 empates e apenas uma vitória contra Fischer), não era páreo, sobretudo num match longo, quanto mais em três matches longos - pois esta era a forma de decidir, após a abolição do Torneio de Candidatos, quem seria o desafiante do campeão mundial; o segundo, jamais havia enfrentado Fischer (no Interzonal de Palma de Mallorca, eles empataram) e, apesar de excelente jogador, dificilmente alguém pensaria em colocá-lo no mesmo nível do norte-americano; o terceiro, já era considerado um veterano no final da década de 50 - pelo menos assim o chamou, naquela época, Vasily Panov, em seu famoso livro sobre as aberturas do xadrez; restava Geller, um dos três jogadores soviéticos com retrospecto favorável diante de Fischer (ou outros eram Tahl e o próprio campeão, Boris Spassky). Mas Geller já estava a caminho dos 50 anos, enquanto Fischer nem havia completado 30. Num match longo, para não falar em três, essa é uma diferença fatal.

Além dessa avaliação sobre os que concorriam com Fischer, dificilmente os problemas específicos de Spassky deixaram de merecer atenção nos EUA. Era público o desconforto de Spassky com a política soviética, sobretudo após os acontecimentos na Tcheco-eslováquia em 1968, e, desgraçadamente, não porque fosse partidário de outro caminho para o socialismo. Como outros, apenas esmagava-se diante da campanha que pintava a URSS como uma tirania e os EUA como uma democracia, assim como a área de influência do último - aquela coleção de ditaduras que tão bem conhecemos - como "mundo livre". Em suma, no momento em que, para enfrentar Fischer, era necessário acreditar que valia a pena defender a URSS, pois a luta enxadrística havia se transformado numa guerra política, o melhor jogador soviético, para usar uma expressão moderada, não tinha certeza sobre isso.

BOBBY

No entanto, o problema de Edmonson e do establishment norte-americano era Fischer. Apesar da FIDE, depois de suas acusações aos soviéticos em 1962, haver mudado a forma de disputa do título - e exatamente no sentido que ele havia proposto – Fischer não disputara mais o campeonato mundial. Não comparecera ao Interzonal de Amsterdã, em 1964, apesar de estar classificado (foi campeão dos EUA no ano anterior) e abandonara o Interzonal de Sousse, em 1967 - um escândalo que rendeu não poucas páginas às revistas de xadrez, causado pela perplexidade: Fischer estava em primeiro lugar, com um resultado impressionante (em 10 partidas havia ganho sete e empatado três), quando se retirara, mesmo com a FIDE cedendo às exigências de que sua agenda de jogos – e, portanto, também a de seus oponentes - estivesse submetida aos dogmas da Igreja Mundial de Deus.

Edmonson não conseguira que Fischer disputasse o Campeonato dos EUA de 1969. Mas, então, providenciou a esquisita interpretação para inclui-lo no Interzonal de Palma de Mallorca: se um dos três americanos classificados para o Interzonal desistisse e os outros jogadores que participaram da final do Campeonato dos EUA - portanto, suplentes dos classificados - concordassem, isto é, também desistissem de substituir o desistente, Fischer poderia jogar em Palma de Mallorca.

Restava apenas convencer Fischer. É nesse momento que a Casa Branca, isto é, Nixon e, sobretudo, Kissinger, na época Conselheiro de Segurança Nacional, parecem ter saído dos bastidores e entrado em cena.

Misérias e Glórias no Xadrez - Parte 9

Retirado do site de Hélder Câmara

Há um aspecto da personalidade e da vida de Fischer que foi muito pouco abordado no que se escreveu sobre ele: sua primeira tendência não foi a de antagonizar os jogadores soviéticos, mas a de tentar ser aceito por eles. O que é, aliás, coerente com seu estilo de jogo, desenvolvido a partir das pesquisas enxadrísticas soviéticas das décadas de 30, 40 e 50. No entanto, essas tentativas de aproximação não obtiveram sucesso – ou, para ser exato, compreensão. Mas que ele, ao seu jeito, tentou, não nos parece haver dúvida.

No principal livro de Fischer, uma coleção de análises das suas partidas “memoráveis” até o fim da década de 60, há uma breve menção a um episódio significativo: comentando seu jogo com Arthur Bisguier no campeonato americano de 1963, ele conta que havia conversado anteriormente com David Bronstein (logo quem!) sobre a 17ª jogada, uma novidade em relação ao que o seu interlocutor havia jogado em 1953 contra Samuel Reshevsky, no Torneio de Candidatos, em Zurique: “Quando eu disse a Bronstein (em Mar del Plata, 1960) que a jogada era um tremendo [tremendous] melhoramento em relação à sua partida com Reshevsky, ele respondeu: 'Claro. Depois de sete anos alguém iria achar um melhoramento'” (Fischer, “My 60 Memorable Games”, Simon and Schuster, NY, 1969, pág. 293).

Parece razoável a resposta, diante da atrevida palavra “tremendo”, usada por Fischer. No entanto, em 1960, Fischer era um desajeitado (e haja desajeitado nisso) jovem de 17 anos e Bronstein, com 36, era, desde 1950, um dos maiores jogadores do mundo. Nos parece evidente que Fischer queria a aprovação de Bronstein - e recebeu um corte brusco. O fato de que em 1969, quando publicou seu livro, tenha sentido necessidade de reproduzir, ou não tenha conseguido omitir, uma réplica de nove anos antes que o reduzia a “alguém”, ou seja, um qualquer, somente nos parece enfatizar o que acabamos de dizer – e o ressentimento que acumulou com a rejeição dos soviéticos.

Infelizmente, não foi apenas Bronstein que tratou mal as tentativas de aproximação do jovem Fischer. O próprio Botvinnik repete tanto a palavra “arrogante” sempre que se refere a Fischer, que torna-se nítido que jamais se deteve a pensar no que essa arrogância significava em termos de insegurança, necessidade de aceitação - e medo à rejeição. Quanto a Tahl, um dos poucos soviéticos que não parece irritado com Fischer, a princípio se divertiu bastante com o ridículo do colega, o único mais jovem que ele entre os Grandes Mestres da época... Mas isso também não ajudou muito.

MEMORIAL

Devido às implicações políticas do match Fischer-Spassky, em 1972, da interferência de Kissinger, e da quase incrível defensiva dos soviéticos, tem-se a tendência a ver o Fischer das décadas de 60 e 70 apenas como um direitista maluco, instrumento inconsciente do establishment norte-americano na “guerra fria” - para o que contribuiu, não pouco, o seu artigo de 1962 na “Sports Illustrated”.

No entanto, a realidade é (ou foi) mais complexa. Basta ver a sua atitude em relação a Cuba, precisamente o único país que, no início da década de 60, irritava mais a casta dominante nos EUA do que a URSS.

Em 1965, Fischer estava inscrito no Torneio Memorial Capablanca, em Havana. Como aconteceria 27 anos depois em relação à Iugoslávia, o governo norte-americano proibiu que fosse a Cuba. Para o establishment, a participação do maior jogador dos EUA num evento em Havana estava longe de ser um acontecimento alvissareiro. Por outro lado, considerando o seu temperamento, proibi-lo de viajar era uma temeridade, até porque as condições políticas para puni-lo não eram as que surgiriam quase trinta anos depois: Johnson não era Bush (pai ou filho); o Partido Democrata na Casa Branca não era – e não é – a mesma coisa que o Partido Republicano na Casa Branca; o movimento pelos direitos civis estava na rua; e já se começava a gestar a rebelião contra a Guerra do Vietnã; em síntese, os EUA saídos do breve governo Kennedy não eram os EUA de 1992, após 11 anos de Reagan/Bush.

Foi nesse momento que entrou em ação o indefectível (nessas horas) “The New York Times”, com uma suposta notícia em que Fidel Castro capitalizava politicamente o Memorial.

A “notícia” era uma fraude, as declarações de Fidel, falsas. Mas Fischer dirigiu ao líder cubano o seguinte telegrama:

“Primeiro-ministro Fidel Castro,

“Oponho-me às suas manifestações, publicadas hoje no 'New York Times', proclamando uma vitória propagandística, e, por este ato, me retiro do Torneio Capablanca. Somente voltarei a entrar no torneio se me enviar um telegrama assegurando-me que você e seu governo não buscam benefícios políticos de minha participação, e que não se produzirão no futuro mais comentários políticos de sua parte a respeito da minha participação. Bobby Fischer".

A resposta de Fidel não se fez esperar:

“Bobby Fischer, New York, USA.

“Acabo de receber seu telegrama. Surpreende-me que você me atribua algum tipo de manifestação referente à sua participação no torneio. A este respeito não disse nem falei uma palavra com ninguém. Só tenho sobre isso notícias que li em despachos de agências norte-americanas. Nosso país não tem necessidade de tão efêmera propaganda. É seu o problema de participar ou não no mencionado torneio. Suas palavras são, portanto, injustas. Se você se assustou e arrependeu-se de sua decisão inicial, seria melhor que imaginasse outro pretexto e tivesse o valor de ser honesto. Dr. Fidel Castro, primeiro-ministro do Governo Revolucionário”.

Surpreendentemente, logo depois de receber a mensagem de Fidel, Fischer confirmou sua participação no Memorial Capablanca e anunciou que, se não podia ir a Havana, jogaria por teletipo, de Nova Iorque. Em suma, reconhecera a razão de Fidel – e percebera, de alguma forma e em algum grau, que esse templo da imprensa americana, o “The New York Times”, tinha algum parentesco com um lupanar

MARSHALL CLUB

Há um elemento psicológico importante, revelado por Fischer nesse episódio. Ele não conheceu o pai – e não porque este houvesse falecido, mas porque foi afastado dele, e já veremos como e porquê. O pai, falando de forma geral e algo esquemática, para as crianças é o representante do limite entre a fantasia e a realidade. Se a mãe é o objeto das fantasias mais primitivas da criança, o pai é aquele que estabelece o limite dessas fantasias – ou seja, a existência da realidade. Na troca de mensagens entre Fischer e Fidel, é claro quem estabeleceu esse limite – nesse caso, entre a falsidade da mídia imperialista, isto é, a fantasia fabricada por interesses político-ideológicos, e a realidade. O significativo é que Fischer haja reagido tão bem a este limite “paterno”.

Jogando por teletipo, Fischer conquistou o segundo lugar no Memorial Capablanca (15 pontos em 21 possíveis), empatado com o iugoslavo Ivkov e com o soviético Geller, a meio ponto do primeiro colocado, Smyslov. Por teletipo, instalado no Marshall Club, de Nova Iorque, ele havia furado um bloqueio promovido pelo governo dos EUA – e, como se sabe, não seria a última vez.

Porém, houve coisa pior para o establishment: um ano depois, Fischer estaria, em pessoa, na capital cubana - e amistosamente ao lado de Fidel.

Ele havia conhecido Havana aos 13 anos, em 1956, quando fazia parte da equipe do Log Cabin Chess Club, de West Orange, Nova Jersey. Mas, naquela oportunidade, foi acompanhado pela mãe, e Havana era, então, uma cidade diferente: a capital de um país oprimido pela ditadura de Batista, pelas multinacionais e bancos norte-americanos - e pela Máfia.

Já em 1966, com 23 anos, Fischer era o primeiro-tabuleiro da equipe norte-americana na 17ª Olimpíada de Xadrez. No dia da abertura da Olimpíada, 25 de outubro, Fidel entrou na sala de jogos, no hotel Habana Libre. Ele e Fischer apertaram as mãos e, em seguida, o norte-americano fez algumas piadas sobre a troca de mensagens do ano anterior, o que foi correspondido com bom humor pelo líder cubano.

Fischer presenteou Fidel com um de seus livros, devidamente autografado, e, em seguida, disputaram uma partida “em consulta”, ou seja, em dupla. Fidel fez parceria com o campeão mundial Tigran Petrosian contra a dupla formada pelo mestre mexicano Filiberto Terrazas e Fischer. O líder cubano e o campeão mundial venceram a partida.

Note-se que esses acontecimentos se passaram três e quatro anos após a publicação do artigo em que acusava os soviéticos de trapaça (v. Barreras Merino, “Fischer y su vinculación a la Habana”, ext. de “Recorrido del Mundo del Tablero”, em “Ajedrez en Cuba”, vol. II-11, nº21, 06/1998. O autor foi diretor técnico da Olimpíada de Havana).

URSS-EUA

A equipe dos EUA foi a segunda colocada em Havana, graças a Fischer, que venceu 14 partidas, empatou 2 e perdeu apenas uma – para o GM romeno Florin Gheorghiu. Um aproveitamento de 88,2% (15 pontos em 17 possíveis).

A primeira colocada, pela 8ª vez consecutiva, foi a equipe soviética (desde 1952, em 21 Olimpíadas, a URSS venceu 19; somente não venceu em 1976, quando não foi a Israel, e em 1978, quando não enviou a melhor equipe a Buenos Aires - e perdeu da Hungria).

Em Havana, o primeiro-tabuleiro soviético, Tigran Petrosian, foi o único com resultado relativo melhor que Fischer: fez 11,5 pontos em 13 partidas - 10 vitórias, 3 empates e nenhuma derrota (aproveitamento de 88,5%). Fischer fez 15 pontos, mas em 17 partidas. A diferença no número de partidas é devida a que, nas olimpíadas de xadrez, há tabuleiros-reserva, ou seja, jogadores no banco, que podem jogar em determinados matches no lugar dos titulares.

Porém, apesar das relações amistosas entre Fidel e Fischer, a luta política não amainou.

Os EUA, ao invés de boicotarem a Olimpíada de Havana – como fez, por exemplo, a Alemanha Ocidental – resolveram enviar seus melhores jogadores. Mas Fischer havia se convertido a uma seita evangélica que tinha entre seus dogmas um retiro espiritual que começava às 18 h de sexta-feira e ia até as 18 h de sábado. No match com a Dinamarca, os norte-americanos reivindicaram que as partidas começassem às 12 h, ao invés das 16 h, para que Fischer participasse. Os dinamarqueses recusaram – e também o árbitro-chefe da Olimpíada, Jaroslav Sajtar. Os norte-americanos tiveram que substituir Fischer pelo segundo-tabuleiro, Robert Byrne, na partida contra o primeiro-tabuleiro dinamarquês, Bent Larsen.

Porém, contra a URSS os norte-americanos não se comportaram com o mesmo respeito às regras. Repetia-se agora a comédia da Olimpiada de Munique, com uma diferença: Botvinnik não era mais o primeiro-tabuleiro soviético.

Em suma, os EUA ameaçaram retirar-se da Olimpíada se o match com a URSS não fosse reagendado. A resposta do árbitro foi: “de forma alguma”. A equipe dos EUA não apareceu na hora do match com a URSS, mas não foi embora. O presidente da FIDE, o Folke Rogard que já vimos em ação na parte 6 deste artigo, propôs que o match que os EUA haviam perdido por W.O. fosse considerado empatado em 2 a 2. Rogard já passara à fase do vale-tudo contra os soviéticos - seria o desbravador de uma trilha que levaria ao esfacelamento do xadrez mundial.

O leitor que vem acompanhando esta série não terá muita dificuldade em adivinhar o que houve em seguida: os soviéticos concordaram em disputar outra vez o match. No xadrez, não havia mais obstáculo – Botvinnik já não estava lá - à política de apaziguamento, que, no final, conduziria à rendição.

A MÃE

Fischer tinha motivos, não somente enxadrísticos, mas inclusive familiares, para suas tentativas iniciais de aproximação com os soviéticos. Teremos de expô-los brevemente, pois Fischer, de todos os grandes jogadores, é o único que não pode ser descrito sem esse pano de fundo familiar.

Sua mãe, Regina, esteve entre aqueles norte-americanos que mudaram-se para a URSS na década de 30 – a maioria, buscando trabalho e oportunidade de estudar. Foi na URSS que Regina, depois de entrar para a Faculdade de Medicina, casou-se com Hans Gehardt Fischer, um biofísico alemão. Em Moscou, nasceu a primeira filha do casal, Joan, a irmã que depois ensinaria a Bobby o movimento das peças de xadrez.

Sobre algumas polêmicas a respeito da paternidade de Fischer, entraremos apenas em uma questão, porque ela extrapola o plano meramente pessoal. Mas, antes, reproduziremos a única declaração sobre seu pai que conhecemos de Fischer: “Meu pai deixou minha mãe quando eu tinha dois anos de idade. Eu nunca o vi. Minha mãe somente me disse que seu nome era Gerhardt e que ele era de origem alemã” (cf., Frank Brady, “In Defense of Bobby Fischer's Family: House of Cards in the World of Chess”, ChessCafe, 04/06/2002 – este artigo, do primeiro biógrafo de Fischer, é resposta a um tardio e debilóide panfleto macartista, “A mãe de Fischer era uma espiã comunista?”, de um certo Frank Dudley Berry, Jr).

Mas, nos relatórios do FBI, surgiu o nome de Paul Felix Nemenyi, um físico de origem iugoslava falecido em 1952, como provável pai de Fischer. Sobre isso, nos parece que o FBI tinha demasiado interesse em que Nemenyi fosse o pai do filho caçula de Regina. Nessa época, J. Edgard Hoover (algumas das ordens para vigiar os Fischer vieram diretamente de seu gabinete) tentava provar que Regina era uma espiã soviética, apesar da mãe de Fischer trabalhar, modestamente, como enfermeira. No entanto, Nemenyi, com quem teria se relacionado, fez parte do Projeto Manhattan, que construiu a primeira bomba atômica. Para o FBI, não seria uma montagem muito diferente da que fez com o casal Rosenberg – por sinal, como Regina, de origem judaica e politicamente à esquerda.

Ao que parece, o biofísico Hans Gehardt Fischer foi impedido, por razões políticas, de viver com a mulher nos EUA. Ele jamais conseguiu entrar no país, segundo um relatório do FBI (Peter Nicholas e Clea Benson, “Files reveal how FBI hounded chess king”, Philadelphia Inquirer, 17/11/2002).

Radicado no Chile, Hans Gehardt foi visitado pelo filho (então com 16 anos) em 1959, de acordo com testemunho do mestre chileno Eugenio Larrain, que foi seu cicerone nesta visita (v. Hélder Câmara, “Bobby 'Ahasverus' Fischer” - em comunicação pessoal, o autor relatou-nos que a visita de Fischer ao pai foi-lhe confirmada por outro mestre chileno, Pedro Donoso, homem de integridade indiscutível). Evidentemente, esse relato é discrepante com a declaração de Fischer transcrita acima. Mas isso não seria surpresa em quem sempre defendeu tenazmente a sua vida pessoal da espionagem midiática.

Rapidamente, para que não tenhamos que voltar aos aspectos familiares de Fischer: sua mãe interrompeu seus estudos de medicina em 1938; ao voltar para os EUA, sem o marido, aceitou vários empregos e, por fim, tornou-se enfermeira, sustentando a família dessa forma. Não há indício de que tenha sido uma mãe relapsa. Pelo contrário: não apenas sempre foi uma incentivadora de Bobby, como, em 1973, com ele já campeão mundial mas vivendo em Los Angeles quase em penúria, ela enviou seus cheques da Seguridade Social para ajudá-lo. Em seu testamento, estabelece que seja entregue “a meu filho Robert, quaisquer itens que ele possa pedir”.

Como disse Frank Brady, não apenas biógrafo, mas amigo na adolescência de Fischer, “o coração de Regina sempre esteve, realmente, do lado esquerdo”. Mais do que isso: ela jamais achou que devia alguma satisfação ao establishment. Em 1957, por exemplo, ela escreveu diretamente ao primeiro-secretário do PCUS, Nikita Kruschev, pedindo que convidasse Bobby para o Festival Mundial da Juventude. Kruschev respondeu, enviando o convite – que chegou tarde demais para que Bobby viajasse (cf. Bill Wall, “Robert James (Bobby) Fischer”).

Porém, um ano depois, ele seria convidado a ir a Moscou, onde esteve com Petrosian – mas queixou-se de que não conseguiu encontrar-se com outros mestres soviéticos. Foi depois dessa viagem que o FBI suspeitou que ele fosse um espião recrutado pelos soviéticos. Fischer tinha 15 anos...

Regina teve uma vida difícil, perdendo empregos devido às entrevistas que o FBI promovia sobre ela com vizinhos, colegas e patrões. Mas dedicou-se sempre às causas em que acreditava. A última anotação, em 1973, nos papéis já conhecidos do FBI, é sobre sua oposição à Guerra do Vietnã. Nessa época, Fischer já era campeão do mundo. Mas sua mãe já não era mais enfermeira. Havia, em 1968, realizado o sonho de sua juventude: formou-se, aos 55 anos, em medicina – pela Universidade Friederich Schiller, na Alemanha Oriental. Depois, exerceu sua profissão na América Central. Morreu em 1997, aos 84 anos. Quatro anos antes, aos 85, Hans Gehardt havia falecido em Berlim.

Agora, voltemos ao match Petrosian-Botvinnik e aos seus desdobramentos posteriores. O que faremos na próxima parte de nosso artigo.

Misérias e Glórias no Xadrez - Parte 8

Retirado do site de Hélder Câmara

Há um aspecto da personalidade e da vida de Fischer que foi muito pouco abordado no que se escreveu sobre ele: sua primeira tendência não foi a de antagonizar os jogadores soviéticos, mas a de tentar ser aceito por eles. O que é, aliás, coerente com seu estilo de jogo, desenvolvido a partir das pesquisas enxadrísticas soviéticas das décadas de 30, 40 e 50. No entanto, essas tentativas de aproximação não obtiveram sucesso – ou, para ser exato, compreensão. Mas que ele, ao seu jeito, tentou, não nos parece haver dúvida.

No principal livro de Fischer, uma coleção de análises das suas partidas “memoráveis” até o fim da década de 60, há uma breve menção a um episódio significativo: comentando seu jogo com Arthur Bisguier no campeonato americano de 1963, ele conta que havia conversado anteriormente com David Bronstein (logo quem!) sobre a 17ª jogada, uma novidade em relação ao que o seu interlocutor havia jogado em 1953 contra Samuel Reshevsky, no Torneio de Candidatos, em Zurique: “Quando eu disse a Bronstein (em Mar del Plata, 1960) que a jogada era um tremendo [tremendous] melhoramento em relação à sua partida com Reshevsky, ele respondeu: 'Claro. Depois de sete anos alguém iria achar um melhoramento'” (Fischer, “My 60 Memorable Games”, Simon and Schuster, NY, 1969, pág. 293).

Parece razoável a resposta, diante da atrevida palavra “tremendo”, usada por Fischer. No entanto, em 1960, Fischer era um desajeitado (e haja desajeitado nisso) jovem de 17 anos e Bronstein, com 36, era, desde 1950, um dos maiores jogadores do mundo. Nos parece evidente que Fischer queria a aprovação de Bronstein - e recebeu um corte brusco. O fato de que em 1969, quando publicou seu livro, tenha sentido necessidade de reproduzir, ou não tenha conseguido omitir, uma réplica de nove anos antes que o reduzia a “alguém”, ou seja, um qualquer, somente nos parece enfatizar o que acabamos de dizer – e o ressentimento que acumulou com a rejeição dos soviéticos.

Infelizmente, não foi apenas Bronstein que tratou mal as tentativas de aproximação do jovem Fischer. O próprio Botvinnik repete tanto a palavra “arrogante” sempre que se refere a Fischer, que torna-se nítido que jamais se deteve a pensar no que essa arrogância significava em termos de insegurança, necessidade de aceitação - e medo à rejeição. Quanto a Tahl, um dos poucos soviéticos que não parece irritado com Fischer, a princípio se divertiu bastante com o ridículo do colega, o único mais jovem que ele entre os Grandes Mestres da época... Mas isso também não ajudou muito.

MEMORIAL

Devido às implicações políticas do match Fischer-Spassky, em 1972, da interferência de Kissinger, e da quase incrível defensiva dos soviéticos, tem-se a tendência a ver o Fischer das décadas de 60 e 70 apenas como um direitista maluco, instrumento inconsciente do establishment norte-americano na “guerra fria” - para o que contribuiu, não pouco, o seu artigo de 1962 na “Sports Illustrated”.

No entanto, a realidade é (ou foi) mais complexa. Basta ver a sua atitude em relação a Cuba, precisamente o único país que, no início da década de 60, irritava mais a casta dominante nos EUA do que a URSS.

Em 1965, Fischer estava inscrito no Torneio Memorial Capablanca, em Havana. Como aconteceria 27 anos depois em relação à Iugoslávia, o governo norte-americano proibiu que fosse a Cuba. Para o establishment, a participação do maior jogador dos EUA num evento em Havana estava longe de ser um acontecimento alvissareiro. Por outro lado, considerando o seu temperamento, proibi-lo de viajar era uma temeridade, até porque as condições políticas para puni-lo não eram as que surgiriam quase trinta anos depois: Johnson não era Bush (pai ou filho); o Partido Democrata na Casa Branca não era – e não é – a mesma coisa que o Partido Republicano na Casa Branca; o movimento pelos direitos civis estava na rua; e já se começava a gestar a rebelião contra a Guerra do Vietnã; em síntese, os EUA saídos do breve governo Kennedy não eram os EUA de 1992, após 11 anos de Reagan/Bush.

Foi nesse momento que entrou em ação o indefectível (nessas horas) “The New York Times”, com uma suposta notícia em que Fidel Castro capitalizava politicamente o Memorial.

A “notícia” era uma fraude, as declarações de Fidel, falsas. Mas Fischer dirigiu ao líder cubano o seguinte telegrama:

“Primeiro-ministro Fidel Castro,

“Oponho-me às suas manifestações, publicadas hoje no 'New York Times', proclamando uma vitória propagandística, e, por este ato, me retiro do Torneio Capablanca. Somente voltarei a entrar no torneio se me enviar um telegrama assegurando-me que você e seu governo não buscam benefícios políticos de minha participação, e que não se produzirão no futuro mais comentários políticos de sua parte a respeito da minha participação. Bobby Fischer".

A resposta de Fidel não se fez esperar:

“Bobby Fischer, New York, USA.

“Acabo de receber seu telegrama. Surpreende-me que você me atribua algum tipo de manifestação referente à sua participação no torneio. A este respeito não disse nem falei uma palavra com ninguém. Só tenho sobre isso notícias que li em despachos de agências norte-americanas. Nosso país não tem necessidade de tão efêmera propaganda. É seu o problema de participar ou não no mencionado torneio. Suas palavras são, portanto, injustas. Se você se assustou e arrependeu-se de sua decisão inicial, seria melhor que imaginasse outro pretexto e tivesse o valor de ser honesto. Dr. Fidel Castro, primeiro-ministro do Governo Revolucionário”.

Surpreendentemente, logo depois de receber a mensagem de Fidel, Fischer confirmou sua participação no Memorial Capablanca e anunciou que, se não podia ir a Havana, jogaria por teletipo, de Nova Iorque. Em suma, reconhecera a razão de Fidel – e percebera, de alguma forma e em algum grau, que esse templo da imprensa americana, o “The New York Times”, tinha algum parentesco com um lupanar

MARSHALL CLUB

Há um elemento psicológico importante, revelado por Fischer nesse episódio. Ele não conheceu o pai – e não porque este houvesse falecido, mas porque foi afastado dele, e já veremos como e porquê. O pai, falando de forma geral e algo esquemática, para as crianças é o representante do limite entre a fantasia e a realidade. Se a mãe é o objeto das fantasias mais primitivas da criança, o pai é aquele que estabelece o limite dessas fantasias – ou seja, a existência da realidade. Na troca de mensagens entre Fischer e Fidel, é claro quem estabeleceu esse limite – nesse caso, entre a falsidade da mídia imperialista, isto é, a fantasia fabricada por interesses político-ideológicos, e a realidade. O significativo é que Fischer haja reagido tão bem a este limite “paterno”.

Jogando por teletipo, Fischer conquistou o segundo lugar no Memorial Capablanca (15 pontos em 21 possíveis), empatado com o iugoslavo Ivkov e com o soviético Geller, a meio ponto do primeiro colocado, Smyslov. Por teletipo, instalado no Marshall Club, de Nova Iorque, ele havia furado um bloqueio promovido pelo governo dos EUA – e, como se sabe, não seria a última vez.

Porém, houve coisa pior para o establishment: um ano depois, Fischer estaria, em pessoa, na capital cubana - e amistosamente ao lado de Fidel.

Ele havia conhecido Havana aos 13 anos, em 1956, quando fazia parte da equipe do Log Cabin Chess Club, de West Orange, Nova Jersey. Mas, naquela oportunidade, foi acompanhado pela mãe, e Havana era, então, uma cidade diferente: a capital de um país oprimido pela ditadura de Batista, pelas multinacionais e bancos norte-americanos - e pela Máfia.

Já em 1966, com 23 anos, Fischer era o primeiro-tabuleiro da equipe norte-americana na 17ª Olimpíada de Xadrez. No dia da abertura da Olimpíada, 25 de outubro, Fidel entrou na sala de jogos, no hotel Habana Libre. Ele e Fischer apertaram as mãos e, em seguida, o norte-americano fez algumas piadas sobre a troca de mensagens do ano anterior, o que foi correspondido com bom humor pelo líder cubano.

Fischer presenteou Fidel com um de seus livros, devidamente autografado, e, em seguida, disputaram uma partida “em consulta”, ou seja, em dupla. Fidel fez parceria com o campeão mundial Tigran Petrosian contra a dupla formada pelo mestre mexicano Filiberto Terrazas e Fischer. O líder cubano e o campeão mundial venceram a partida.

Note-se que esses acontecimentos se passaram três e quatro anos após a publicação do artigo em que acusava os soviéticos de trapaça (v. Barreras Merino, “Fischer y su vinculación a la Habana”, ext. de “Recorrido del Mundo del Tablero”, em “Ajedrez en Cuba”, vol. II-11, nº21, 06/1998. O autor foi diretor técnico da Olimpíada de Havana).

URSS-EUA

A equipe dos EUA foi a segunda colocada em Havana, graças a Fischer, que venceu 14 partidas, empatou 2 e perdeu apenas uma – para o GM romeno Florin Gheorghiu. Um aproveitamento de 88,2% (15 pontos em 17 possíveis).

A primeira colocada, pela 8ª vez consecutiva, foi a equipe soviética (desde 1952, em 21 Olimpíadas, a URSS venceu 19; somente não venceu em 1976, quando não foi a Israel, e em 1978, quando não enviou a melhor equipe a Buenos Aires - e perdeu da Hungria).

Em Havana, o primeiro-tabuleiro soviético, Tigran Petrosian, foi o único com resultado relativo melhor que Fischer: fez 11,5 pontos em 13 partidas - 10 vitórias, 3 empates e nenhuma derrota (aproveitamento de 88,5%). Fischer fez 15 pontos, mas em 17 partidas. A diferença no número de partidas é devida a que, nas olimpíadas de xadrez, há tabuleiros-reserva, ou seja, jogadores no banco, que podem jogar em determinados matches no lugar dos titulares.

Porém, apesar das relações amistosas entre Fidel e Fischer, a luta política não amainou.

Os EUA, ao invés de boicotarem a Olimpíada de Havana – como fez, por exemplo, a Alemanha Ocidental – resolveram enviar seus melhores jogadores. Mas Fischer havia se convertido a uma seita evangélica que tinha entre seus dogmas um retiro espiritual que começava às 18 h de sexta-feira e ia até as 18 h de sábado. No match com a Dinamarca, os norte-americanos reivindicaram que as partidas começassem às 12 h, ao invés das 16 h, para que Fischer participasse. Os dinamarqueses recusaram – e também o árbitro-chefe da Olimpíada, Jaroslav Sajtar. Os norte-americanos tiveram que substituir Fischer pelo segundo-tabuleiro, Robert Byrne, na partida contra o primeiro-tabuleiro dinamarquês, Bent Larsen.

Porém, contra a URSS os norte-americanos não se comportaram com o mesmo respeito às regras. Repetia-se agora a comédia da Olimpiada de Munique, com uma diferença: Botvinnik não era mais o primeiro-tabuleiro soviético.

Em suma, os EUA ameaçaram retirar-se da Olimpíada se o match com a URSS não fosse reagendado. A resposta do árbitro foi: “de forma alguma”. A equipe dos EUA não apareceu na hora do match com a URSS, mas não foi embora. O presidente da FIDE, o Folke Rogard que já vimos em ação na parte 6 deste artigo, propôs que o match que os EUA haviam perdido por W.O. fosse considerado empatado em 2 a 2. Rogard já passara à fase do vale-tudo contra os soviéticos - seria o desbravador de uma trilha que levaria ao esfacelamento do xadrez mundial.

O leitor que vem acompanhando esta série não terá muita dificuldade em adivinhar o que houve em seguida: os soviéticos concordaram em disputar outra vez o match. No xadrez, não havia mais obstáculo – Botvinnik já não estava lá - à política de apaziguamento, que, no final, conduziria à rendição.

A MÃE

Fischer tinha motivos, não somente enxadrísticos, mas inclusive familiares, para suas tentativas iniciais de aproximação com os soviéticos. Teremos de expô-los brevemente, pois Fischer, de todos os grandes jogadores, é o único que não pode ser descrito sem esse pano de fundo familiar.

Sua mãe, Regina, esteve entre aqueles norte-americanos que mudaram-se para a URSS na década de 30 – a maioria, buscando trabalho e oportunidade de estudar. Foi na URSS que Regina, depois de entrar para a Faculdade de Medicina, casou-se com Hans Gehardt Fischer, um biofísico alemão. Em Moscou, nasceu a primeira filha do casal, Joan, a irmã que depois ensinaria a Bobby o movimento das peças de xadrez.

Sobre algumas polêmicas a respeito da paternidade de Fischer, entraremos apenas em uma questão, porque ela extrapola o plano meramente pessoal. Mas, antes, reproduziremos a única declaração sobre seu pai que conhecemos de Fischer: “Meu pai deixou minha mãe quando eu tinha dois anos de idade. Eu nunca o vi. Minha mãe somente me disse que seu nome era Gerhardt e que ele era de origem alemã” (cf., Frank Brady, “In Defense of Bobby Fischer's Family: House of Cards in the World of Chess”, ChessCafe, 04/06/2002 – este artigo, do primeiro biógrafo de Fischer, é resposta a um tardio e debilóide panfleto macartista, “A mãe de Fischer era uma espiã comunista?”, de um certo Frank Dudley Berry, Jr).

Mas, nos relatórios do FBI, surgiu o nome de Paul Felix Nemenyi, um físico de origem iugoslava falecido em 1952, como provável pai de Fischer. Sobre isso, nos parece que o FBI tinha demasiado interesse em que Nemenyi fosse o pai do filho caçula de Regina. Nessa época, J. Edgard Hoover (algumas das ordens para vigiar os Fischer vieram diretamente de seu gabinete) tentava provar que Regina era uma espiã soviética, apesar da mãe de Fischer trabalhar, modestamente, como enfermeira. No entanto, Nemenyi, com quem teria se relacionado, fez parte do Projeto Manhattan, que construiu a primeira bomba atômica. Para o FBI, não seria uma montagem muito diferente da que fez com o casal Rosenberg – por sinal, como Regina, de origem judaica e politicamente à esquerda.

Ao que parece, o biofísico Hans Gehardt Fischer foi impedido, por razões políticas, de viver com a mulher nos EUA. Ele jamais conseguiu entrar no país, segundo um relatório do FBI (Peter Nicholas e Clea Benson, “Files reveal how FBI hounded chess king”, Philadelphia Inquirer, 17/11/2002).

Radicado no Chile, Hans Gehardt foi visitado pelo filho (então com 16 anos) em 1959, de acordo com testemunho do mestre chileno Eugenio Larrain, que foi seu cicerone nesta visita (v. Hélder Câmara, “Bobby 'Ahasverus' Fischer” - em comunicação pessoal, o autor relatou-nos que a visita de Fischer ao pai foi-lhe confirmada por outro mestre chileno, Pedro Donoso, homem de integridade indiscutível). Evidentemente, esse relato é discrepante com a declaração de Fischer transcrita acima. Mas isso não seria surpresa em quem sempre defendeu tenazmente a sua vida pessoal da espionagem midiática.

Rapidamente, para que não tenhamos que voltar aos aspectos familiares de Fischer: sua mãe interrompeu seus estudos de medicina em 1938; ao voltar para os EUA, sem o marido, aceitou vários empregos e, por fim, tornou-se enfermeira, sustentando a família dessa forma. Não há indício de que tenha sido uma mãe relapsa. Pelo contrário: não apenas sempre foi uma incentivadora de Bobby, como, em 1973, com ele já campeão mundial mas vivendo em Los Angeles quase em penúria, ela enviou seus cheques da Seguridade Social para ajudá-lo. Em seu testamento, estabelece que seja entregue “a meu filho Robert, quaisquer itens que ele possa pedir”.

Como disse Frank Brady, não apenas biógrafo, mas amigo na adolescência de Fischer, “o coração de Regina sempre esteve, realmente, do lado esquerdo”. Mais do que isso: ela jamais achou que devia alguma satisfação ao establishment. Em 1957, por exemplo, ela escreveu diretamente ao primeiro-secretário do PCUS, Nikita Kruschev, pedindo que convidasse Bobby para o Festival Mundial da Juventude. Kruschev respondeu, enviando o convite – que chegou tarde demais para que Bobby viajasse (cf. Bill Wall, “Robert James (Bobby) Fischer”).

Porém, um ano depois, ele seria convidado a ir a Moscou, onde esteve com Petrosian – mas queixou-se de que não conseguiu encontrar-se com outros mestres soviéticos. Foi depois dessa viagem que o FBI suspeitou que ele fosse um espião recrutado pelos soviéticos. Fischer tinha 15 anos...

Regina teve uma vida difícil, perdendo empregos devido às entrevistas que o FBI promovia sobre ela com vizinhos, colegas e patrões. Mas dedicou-se sempre às causas em que acreditava. A última anotação, em 1973, nos papéis já conhecidos do FBI, é sobre sua oposição à Guerra do Vietnã. Nessa época, Fischer já era campeão do mundo. Mas sua mãe já não era mais enfermeira. Havia, em 1968, realizado o sonho de sua juventude: formou-se, aos 55 anos, em medicina – pela Universidade Friederich Schiller, na Alemanha Oriental. Depois, exerceu sua profissão na América Central. Morreu em 1997, aos 84 anos. Quatro anos antes, aos 85, Hans Gehardt havia falecido em Berlim.

Agora, voltemos ao match Petrosian-Botvinnik e aos seus desdobramentos posteriores. O que faremos na próxima parte de nosso artigo.

Misérias e Glórias no Xadrez - Parte 7

Retirado do site de Hélder Câmara

O artigo de Fischer, “How the russians fixed world chess” (“Como os russos fraudam o xadrez mundial”), publicado na “Sports Illustrated” em agosto de 1962, pode ser resumido rapidamente: durante o Torneio de Candidatos de Curaçao, realizado dois meses antes, os soviéticos (havia cinco entre os oito competidores: Tahl, Petrosian, Keres, Geller e Korchnoi) combinavam os resultados, em geral empatando rapidamente entre si, enquanto jogavam para valer contra os outros, isto é, contra Fischer (nitidamente, ele não estava muito preocupado com os outros participantes não-soviéticos: o húngaro-americano Pal Benko e o tcheco-eslovaco Miroslav Filip. Mas como ninguém achava que o excelente Filip tivesse chances, muito menos Benko, a questão se resumia, realmente, a Fischer).

Assim, era através da trapaça que, supostamente, os soviéticos conseguiam vencer torneios e, sobretudo, manter o título de campeão mundial. Por conseqüência, essa também era a razão de Fischer não haver saído de Curaçao como o desafiante de Botvinnik: os soviéticos, isto é, os comunistas, trapacearam para impedi-lo.

Note-se que, pelo menos explicitamente, Fischer não está se queixando de que os soviéticos se ajudavam mutuamente na análise de suas partidas, o que era público – e lícito. O próprio Botvinnik, na análise de sua única partida com Fischer (ocorrida no mesmo ano, na Olimpíada de Varna), declarou que obtivera o empate numa situação desfavorável, devido a uma idéia de seu colega Efim Geller. Explicitamente, não é disso que Fischer se queixa – embora esta nos pareça a verdadeira razão de seu inconformismo, como veremos até o final desta parte de nosso artigo.

A queixa explícita de Fischer é a de que os soviéticos combinavam seus resultados, o que não era lícito. Além disso, segundo ele, durante seus jogos os soviéticos rodeavam a mesa e, ignorando que entendia o idioma russo, davam sugestões e/ou instruções aos compatriotas que o enfrentavam, e o atrapalhavam com a tagarelice. Como este problema poderia ser resolvido simplesmente com uma queixa ao árbitro, não nos deteremos nele – assim como não se detiveram nenhum dos que apoiaram Fischer, exceto fugazmente.

No entanto, a primeira acusação perdurou por longos anos e, na verdade, ainda perdura. Ela ainda é, com as copiosas ampliações de Kasparov, uma das bases da campanha anti-comunista – e não apenas no xadrez. Livros e autores que se pretendem muito sérios, continuam repetindo-a. (v., p. ex., o livro de 2005 do GM holandês Jan Timman, “Curaçao 1962 - The Battle of Minds That Shook the Chess World” - e esse autor não é apenas Grande Mestre, mas um ex-candidato a campeão mundial, e editor-chefe da “New in Chess”, hoje, provavelmente, a mais lida revista sobre xadrez).

Sobretudo, a acusação de Fischer foi o pretexto para um atropelo geral nas regras do campeonato mundial. A FIDE, sob pressão norte-americana, acabou com o Torneio de Candidatos, substituindo-o por matches entre os pretendentes ao título – ou seja, tratou como verdadeira a acusação.

O problema, evidentemente, não era que as regras não podiam ser alteradas. O problema é que quando elas são alteradas sob um pré-julgamento contra um dos lados em disputa – uma disputa que, inclusive, ia bem além do xadrez – e a favor de outro, está aberto o caminho para que ninguém respeite regra alguma. Assim, a alteração das regras, que começara com a revogação do direito do campeão ao match-revanche, deu mais um passo em direção à anarquia que seria alcançada com a cisão de Kasparov, em 1993.

O pior de tudo, provavelmente, foi que a acusação de Fischer colocou em defensiva não somente os soviéticos, mas pessoas que estavam bastante longe de concordar com a propaganda anti-comunista. O autor destas linhas deve confessar, honestamente, que foi um desses.

Mas isso não aconteceu por acaso: mesmo hoje, basta uma releitura do artigo de Fischer para perceber que o autor não está mentindo, pelo menos não no sentido em que, em geral, se usa a palavra “mentira”. Ele realmente tinha convicção no que dizia. Essa é a força maior do texto, pois não é uma experiência comum para a maioria das pessoas travar contato com alguém convicto, não de uma crença, mas de um fato, e, ao mesmo tempo, o suposto fato não ser verdade.

Para dificultar ainda mais a distinção entre fato e fantasia, entrou em cena a máquina da mídia e dos órgãos governamentais norte-americanos. Pouco tempo antes, em 1958, o FBI desconfiara que Fischer havia sido recrutado como espião pelos soviéticos. Agora, haviam conseguido um propagandista ideal, ainda que inconsciente (ou ideal por causa disso mesmo): alguém que acreditava no que dizia, e contava uma história, digamos, plausível.

Nessa época, evidentemente, não se sabia que o FBI vigiava a família de Fischer desde a década de 40. Os documentos referentes a isso somente seriam liberados, com inúmeras tarjas negras sobre o texto, em 2002.

A última dificuldade foram os desmentidos soviéticos (inclusive os de Keres e Petrosian), que não ajudaram a elucidar a questão. Eram desmentidos - o que é outro sinal da defensiva dos soviéticos a partir de Kruschev - genéricos. Não demoliam ou desmontavam as alegações do oponente – o que, sem dúvida, é o caminho seguro para a derrota, mesmo quando se está com a verdade, e o adversário, com a mentira. Se a verdade pudesse se impor somente porque é verdade - ou seja, sem o esforço dos que estão com ela para desmascarar a mentira – o nazismo e o macartismo não teriam existido, e o mundo de hoje seria um maravilhoso Shangri-La. Mas não é assim, sem luta, que as coisas funcionam.

CURAÇAO

Examinemos as alegações.

Em seu artigo, Fischer excetua Tahl da conspiração soviética. Até ele reparou que incluí-lo transformaria, antes de tudo para si próprio, a acusação num absurdo. Se há algo que Tahl jamais faria, era, precisamente, combinar um empate. Além disso, depois de 21 rodadas, ele abandonou o torneio, por motivos de saúde – e Fischer visitou-o no hospital, sendo recebido de forma muito amistosa pelo ex-campeão mundial. Portanto, para acreditar na conspiração, Fischer tinha que colocar Tahl fora dela.

Porém, como observou o enxadrista e escritor holandês Tim Krabbé, também é necessário excetuar Korchnoi – não exatamente, como diz Krabbé, porque ele sempre negou, mas por razões políticas e também porque até hoje ninguém conseguiu incluí-lo nessa história (V. Tim Krabbé, “The legend of the Curaçao conspiracy”, in “Open Chess Diary”, nota 299, de 22/10/2005).

Com isso, a conspiração fica reduzida ao envolvimento de três jogadores soviéticos: Petrosian, Keres e Geller. Novamente, como em 1948, é sobre Keres que se concentra a intriga. Recentemente, buscou-se o apoio de Yuri Averbakh (coisa, aliás, bastante fácil – v. parte 5 deste artigo) para dizer que “é claro que foi tudo manipulado” para prejudicar Keres (entrevista de Averbakh para a Schaaknieuws, cit. por Krabbé).

De onde se conclui que, em Curaçao, 1962, teria existido não apenas uma, mas duas conspirações soviéticas: uma, com a participação de Keres, contra Fischer; a segunda, dos outros soviéticos contra o próprio Keres...

Ao leitor que porventura comece a achar, como nós, que essa história é excessivamente absurda, pedimos um pouco de paciência. Lembremos que a suposta autoridade de Averbakh, nesse caso, estriba-se no fato de que ele estava em Curaçao como integrante da delegação soviética. Segundo diz, “os russos” não queriam Keres como desafiante do campeão, porque era um estoniano, nem Geller, porque era um ucraniano de origem judaica - portanto, o vencedor, escolhido de antemão, e favorecido pela trapaça, foi Petrosian.

O problema dessa versão “étnica”, ou, melhor, dessa versão em que os soviéticos (isto é, os comunistas, ou, “os russos”) trapaceavam por racismo, é que Petrosian era armênio. “Porque razão um estoniano e um judeu ucraniano (e o judeu russo Korchnoi!) não eram convenientes e um armênio era, Averbakh deixou, melancolicamente, de dizer”, observa Krabbé em seu “Open Chess Diary”.

Nós acrescentaríamos algumas outras perguntas, sobre o que Averbakh “deixou de dizer”:

1) Por que razão um russo de origem judaica, como Botvinnik, podia ser campeão do mundo, mas um outro russo de origem judaica, Korchnoi, não podia ser o seu desafiante?

2) Por que razão, numa época em que o principal dirigente da URSS, Kruschev, era mais ucraniano que russo, um ucraniano de origem judaica, Geller, não podia ser o desafiante do campeão?

3) Por que razão uma nação báltica, a Letônia, podia ter um campeão do mundo, Mikhail Tahl, mas outra nação báltica, a Estônia, não podia ter Paul Keres como desafiante do campeão?

4) Por último: por que razão um judeu de ascendência alemã – o próprio Averbakh – podia ser presidente da Federação Soviética de Xadrez, mas ucranianos e russos de origem judaica, assim como estonianos, não podiam ser desafiantes do campeão do mundo?

EMPATE

A duas rodadas do fim do torneio, Keres estava em primeiro lugar. Era o virtual desafiante. Foi então que perdeu, não para um soviético, mas para o americano Pal Benko. Aliás, Keres somente perdeu duas partidas em Curaçao, ambas para norte-americanos - Fischer e Benko. Foram essas duas derrotas que o impediram de ser o desafiante do campeão – as duas, para os únicos jogadores norte-americanos presentes ao torneio.

Averbakh não diz que Keres perdeu de propósito, até porque isso seria insustentável diante da partida com Benko, mas afirma que a sua derrota “foi um alívio” para a delegação soviética, que assim não teria que se expor, recorrendo a algo mais escandaloso... Portanto, Averbakh está propugnando que a prova de que existiu a “manipulação”, consiste em que não foi necessário recorrer a ela. Em bom português (mas em péssima lógica): a prova de que “foi tudo manipulado” para excluir Keres é que a manipulação não aconteceu, mas aconteceria, se ele não perdesse para Benko...

Mas, continuemos: uma das provas cruciais apresentadas por Fischer da existência de uma conspiração soviética contra si é a partida de Keres contra Petrosian, na 25ª rodada. Nessa partida, houve um empate em apenas 14 jogadas, algo, aliás, nada raro na trajetória de Petrosian – mais ainda, faltando três rodadas para o final, com os jogadores próximos da exaustão, sobretudo em um torneio no qual cada um enfrentava 4 vezes o mesmo oponente.

Segundo Fischer (e Timman, no livro de 2005), esse empate prova a sua tese, pois a partida estava ganha para um dos lados, e, no entanto, eles empataram rapidamente. Na análise, tanto Fischer quanto Timman procuram demonstrar, o que parece certo, que a partida estava ganha para as negras.

O problema, como ressaltou o GM inglês Raymond Keene, autor de “Petrosian vs the Elite” (Batsford, Londres, 2006), é que quem estava jogando com as negras era Petrosian, e não Keres. Portanto, se Petrosian aceitou ou propôs o empate, numa posição ganhadora, livrou Keres de uma derrota. Ou seja, o jogador estoniano foi beneficiado com a suposta conspiração, da qual, segundo Averbakh, era a vítima. Sobre isso, Krabbé faz outra excelente pergunta: “Se Petrosian era o indicado para ser o vencedor, e Keres não devia vencer, então, o que poderia ter sido mais fácil do que fazer Keres perder essa posição perdida, e dar o ponto a Petrosian?”. Pelo visto, as conspirações dos comunistas no xadrez eram só para empatar, mesmo que isso livrasse suas vítimas da derrota...

Entretanto, poderia acontecer que o empate de Petrosian e Keres tivesse o objetivo de prejudicar Fischer. Aliás, é o que se entende em seu artigo para a “Sports Illustrated”. Portanto, voltemos, aqui, à primeira conspiração.

Na 25ª rodada, quando foi jogada essa partida, Fischer já não tinha chance alguma, nem mesmo teórica, de ser o vencedor do torneio. Estava em quarto lugar, onde permaneceu até o fim do torneio. Já havia perdido para Petrosian, Keres, Geller (duas vezes), Korchnoi, e até mesmo para o seu naturalizado compatriota, Pal Benko. À sua frente estavam, e ficaram, precisamente, os três jogadores soviéticos sobre os quais ele lançou a acusação de trapaça: Petrosian, Keres e Geller. Logo, resta descobrir os motivos dos soviéticos para conspirar contra Fischer, a ponto de fraudar uma partida entre seus dois principais jogadores, numa situação em que o suposto alvo da conspiração já havia saído da pista, e em um jogo onde, se Petrosian vencesse, ao invés de empatar, aumentaria mais a diferença a seu favor, em relação ao jogador norte-americano.

Mas, examinemos outra hipótese. Poderia acontecer que Fischer, em algum momento anterior do torneio, estivesse com chances de ser o vencedor e tenha sido alijado pela conspiração soviética. No entanto, não foi isso o que ocorreu. No início do torneio, Fischer estava mal – começou perdendo as duas primeiras partidas, para Benko e para Geller. Na 14ª rodada, isto é, na exata metade do torneio, Fischer estava atrás de cinco jogadores soviéticos: Petrosian e Geller, em primeiro; Keres, em segundo; Korchnoi, em terceiro.

Mais especificamente: os dois primeiros estavam com 9 pontos; o segundo com 8,5; o terceiro com 8 pontos; e, Fischer, com 7 pontos. A única chance que Fischer tinha de superar os líderes, era se os soviéticos empatassem entre si. Foi, precisamente, o que ocorreu. Ou seja, mais uma vez, se a conspiração tivesse existido, teria sido a favor de Fischer.

A partir daí, o problema de Fischer foi que, mesmo com os empates dos soviéticos dando-lhe uma chance de ser o vencedor, ele perdeu para Keres (21ª rodada) e, embora haja vencido Korchnoi e Geller na 19ª e na 23ª rodadas, empatou duas vezes com Petrosian e também empatou a quarta e última partida tanto com Keres quanto com Geller. Ou seja, não conseguiu superar os jogadores soviéticos, exceto Korchnoi.

Reproduzimos a conclusão de Krabbé: “a forma de Fischer não era boa o suficiente para aproveitar essa vantagem [o empate entre os soviéticos] em seu benefício. Não há razão para pensar que em Curaçao havia algo além de que Geller, Keres e Petrosian, tendo grande respeito uns pelos outros, pensaram em alguns dias de descanso extra, e Petrosian teve mais sorte – ou, talvez, fosse o mais forte. Fischer nunca foi um problema”.

Porém, não havia sido apenas com os soviéticos que Fischer se chocara em Curaçao. Na 5ª rodada, Fischer e Benko adiaram a continuação de suas partidas. Só havia um “segundo” para analisar seus jogos adiados, o GM e ex-campeão norte-americano Arthur Bisguier, pois a Federação dos EUA não havia liberado dinheiro para contratar outro.

No dia seguinte, Fischer dirigiu ao comitê organizador do torneio um pedido para que Benko fosse “penalizado e/ou expulso do torneio”. Transcrevemos a fundamentação, porque ela é importante para avaliar o grau de maturidade de Fischer, com 19 anos na época: “Na noite de 9 de maio, um pouco antes da meia-noite, Benko entrou pelo quarto sem minha permissão (....). Eu imediatamente pedi a ele para sair e ele recusou-se. Eu repetidamente pedi que saísse e ele recusou-se a cada pedido. Ele ficou furioso quando recusei-me a permitir que meu segundo, Arthur Bisguier, o ajudasse a analisar seu adiamento com Petrosian. Ele insultou-me e, quando eu respondi, atacou-me quando eu estava sentado numa cadeira. Eu não revidei. Então, finalmente, ele deixou o quarto” (Hanon W. Russell, “The Fischer-Benko Slapping Incident”).

Posteriormente, Arthur Bisguier exporia o cerne da questão nesse conflito de Fischer com Benko, o que também esclarece muito a respeito do conflito com os soviéticos. No fundo, era a mesma questão: “Apesar de que eu expressei minha disposição de também trabalhar para Benko, Fischer insistiu em que eu fosse unicamente seu segundo. Sua justificativa era que o Torneio de Candidatos é um torneio individual, não um evento de equipes, e Benko era outro oponente em perspectiva”.

Misérias e Glórias no Xadrez - Parte 6

Retirado do site de Hélder Câmara

Kasparov parece ter escolhido o local adequado para iniciar sua campanha a presidente da Rússia: em Washington.

Mestre Hélder Câmara envia-nos a coluna de xadrez do “Washington Post” - que tem, como titular, Lubomir Kavalek, GM tcheco-americano. Na segunda-feira, dia 15, o colunista noticia que Kasparov está em Washington para lançar, no dia seguinte, seu novo livro, “How Life Imitates Chess” (“Como a Vida Imita o Xadrez”).

O título é bastante sintomático, inclusive pela estupidez: como pode a vida imitar algo que é parte dela mesma? Ou será que o xadrez não faz parte da vida? Não é impossível que Kasparov tenha essa última opinião, uma vez que não sabe o que é a vida, porém o mais provável é que não se preocupe com essas minudências. No entanto, é evidente porque a vida tem de imitar o xadrez: para que ele seja presidente da Rússia, assim como foi campeão em xadrez. Para isso, vale tudo, inclusive publicar livros com títulos estúpidos.

No entanto, nos parece que ele, mais uma vez, subestima a inteligência dos outros - nesse caso, dos eleitores russos.

O lançamento em Washington é, naturalmente, para mostrar aos russos como o autor é respeitado pelo mundo. Não é uma surpresa que ele confunda o mundo com os EUA. E, mais ainda, que confunda o incensamento de seu ato de vassalagem com respeito. O que mostra, apenas, que também não sabe o que é respeito. Mas isso o leitor poderá comprovar por outros acontecimentos, nas próximas seções do nosso relato.
O GOLPE
Voltemos a Botvinnik. No Congresso da FIDE de 1959, ele, subitamente, tomou conhecimento da campanha que se desenvolvia “às suas costas”. A questão de abolir o direito do campeão ao match-revanche não estava na pauta divulgada antes do Congresso, o que era obrigatório. Também não havia sido discutida na diretoria – e por uma razão que hoje parece evidente: pelas regras de então, o campeão mundial era membro da diretoria da FIDE.

Botvinnik parece ter ficado completamente surpreso quando Folke Rogard, o sueco que presidiu a FIDE por 21 anos (1949-1970), propôs a revogação do direito ao match-revanche. Mais surpreso ainda deve ter ficado – é o que sugere o tom com que posteriormente abordou a questão – quando a delegação soviética não se opôs. Rogard, que sempre considerou um incômodo a hegemonia soviética, havia tentado acabar com o match-revanche em 1955, durante o Congresso de Gotemburgo. Mas, depois da defesa de Botvinnik, apoiado pela delegação soviética, a proposta contara com apenas um voto, além de Rogard. No entanto, algo mudara entre 1955 e 1959...

Não se tratava de um problema de justiça formal e abstrata (a argumentação era a de que o match-revanche obrigava um desafiante a ganhar dois matches do antigo detentor do título, em vez de apenas um).

Concretamente, a medida era diretamente dirigida contra Botvinnik. Como diria um advogado, faltava a ela a característica da “impessoalidade”, requerida pelo bom Direito. E não apenas porque só havia um único jogador sobre a face da Terra que podia reivindicar o direito que foi abolido.

No centro do método de Botvinnik estava um rigoroso estudo e uma rigorosa disciplina. Mas ele não era somente um enxadrista. A idéia – por sinal, monstruosa - de que jogadores de xadrez somente devem se preocupar com xadrez ainda não havia obtido o beneplácito atual. Ela seria, alguns anos depois, talvez a pior herança que Fischer deixou ao xadrez. Mas, em 1959, não era algo que parecesse razoável – como, aliás, não é.

Como todos sabiam, Botvinnik era também um pesquisador em áreas de fronteira da ciência e da tecnologia. Para disputar o match com Bronstein, interrompera suas pesquisas sobre geradores sincrônicos. Para enfrentar Smyslov, tivera que deixar de lado, por longos meses, o seu trabalho com motores à corrente alternada. Seu trabalho como pesquisador, em geral, interrompia sua participação em competições, o que não favorecia sua forma no primeiro match. A revanche era, justamente, sua oportunidade de dedicar um ano ao estudo do xadrez – e aí retomar o título. Sem ela, Botvinnik teria que enfrentar um problema a mais – e não era um problema pequeno, sobretudo na sua idade – para manter o título.

Tanto a extinção desse direito tinha um alvo certo, que, na hora de efetivar a medida na presença do próprio Botvinnik, a FIDE acabou por adiá-la: não valeria para a próxima disputa, só sendo instituída em 1963.

Porém, aqui, é necessário entender porque a delegação soviética permitiu – e apoiou - um ataque direto à sua maior glória no xadrez. O problema não se explica apenas pela pressão de jogadores soviéticos aspirantes ao título, como Botvinnik deixa entender no terceiro volume de suas “Partidas Selectas”, embora observando que esta pressão “não era só dos meus colegas”. Também não se explica completamente pelo ódio dos kruschevistas a todo e qualquer “símbolo do stalinismo”, inclusive Botvinnik, uma vez que esse atropelo na FIDE era um desprestígio não para Stalin, que já havia falecido, mas para a URSS e, por conseqüência, para os seus dirigentes daquela época.

A atitude soviética na FIDE, a partir da segunda metade da década de 50, era parte daquela política de apaziguamento em relação aos países imperialistas, sobretudo em relação aos EUA, que se tornara política oficial na URSS com Kruschev, especialmente após o XX Congresso do PCUS, em 1956 - e que, levada ao extremo por Gorbachev, acabaria numa catástrofe.

Não sabemos o grau de consciência a que Botvinnik chegou sobre a questão, mas é significativo que ele, em suas memórias publicadas em 1978, se detenha num acontecimento, pouco anterior à decisão da FIDE, em que isso é claro.

Na Olimpíada de Xadrez de Munique (1958), os norte-americanos fizeram uma proposta indecente. Seu primeiro-tabuleiro, Samuel Reshevsky, recusava-se a jogar aos sábados por motivos religiosos. Assim, eles propuseram aos soviéticos que seu primeiro-tabuleiro, Botvinnik, também não comparecesse ao match URSS-EUA. Assim, ambos pontuariam em branco, e a agenda seria cumprida. O único obstáculo a isso era Botvinnik: “Recusei-me a pontuar em branco, a despeito da pressão sobre mim do chefe de nossa delegação, D. Postinikov, e do capitão da equipe, A. Kotov. Eles alegavam estar com medo de que os americanos ameaçassem parar de jogar na Olimpíada e retornar para casa. Enquanto nós estávamos discutindo (isso foi no foyer do Hotel Metropol), o presidente [da entidade] dos jogadores da Alemanha Ocidental, E. Dehne, estava sentado próximo. 'Por que vocês têm medo de que os americanos vão embora? Quem tem que ter medo disso é Dehne, então, consultem-no', eu disse aos meus superiores. 'Se os americanos querem ir embora, então, que vão', disse o alemão, de um modo calmo. Obviamente, eu joguei no match contra os EUA!” (grifo nosso).
TAHL
No mesmo ano em que Smyslov conquistava o título mundial contra Botvinnik, 1957, o Campeonato Soviético foi vencido por Mikhail Tahl, um jovem de Riga, Letônia, então com 20 anos.

Tahl foi, provavelmente, o maior tático e o maior jogador de ataque da história do xadrez. São impressionantes, até hoje, seus sacrifícios de peças, as soluções que pareciam impossíveis em determinadas posições e, não menos importante, sua capacidade de ser bem sucedido em blefar, num jogo que parece pouco propício para isso (o próprio Tahl descreveu implicitamente essa capacidade, na sua maneira bem humorada: “Há 3 tipos de sacrifícios: os corretos, os incorretos, e os meus”).

Independente de sua solidez, isto é, da profundidade ou coerência lógica das suas linhas de jogo, as partidas de Tahl até hoje provocam um prazer estético especial em quem as refaz. Foi com esse estilo espetacular que ele venceu seis vezes o Campeonato Soviético, marca que só foi atingida por um outro único jogador, Mikhail Botvinnik.

Em seu livro autobiográfico, no qual aborda sua experiência como engenheiro, pesquisador e enxadrista, Botvinnik, sucintamente, destrincha aquilo que nas décadas de 50 e 60 era considerado um mistério - o estilo “mágico” de Tahl, chamado, por essa razão, “o bruxo de Riga”: “do ponto de vista da cibernética e da ciência da computação, Mikhail Tahl é um aparato de processamento de dados, um aparato que possui um banco de memória maior e uma velocidade de resposta mais rápida do que os de outros grandes mestres. Isso tem importância decisiva nos casos em que as peças têm grande mobilidade no tabuleiro. Tahl não estava muito interessado em avaliar objetivamente a posição em que estava metido. Podia mesmo ser que, objetivamente, ele ficasse pior ali, mas se somente suas peças estavam móveis, as ramificações de variantes são tão extensas, tão grande é o número de jogadas nessas ramificações, que o oponente não podia dar conta delas e a rápida reação e memória de Tahl falariam mais alto. Essa é a base completa do incomum, do fantástico jogo de Tahl. Ele é baseado em fatores perfeitamente prosaicos” (“Achieving the Aim”, pág. 158 – uma nota: traduzimos o termo técnico “analytical tree” por “ramificações” porque este não é um texto destinado apenas aos enxadristas).

Mas essa compreensão de Botvinnik sobre o jogo de Tahl, é forçoso ressaltar, somente apareceu 18 anos após o primeiro match entre os dois.

Sob alguns aspectos, o jogador letão, um professor de literatura, era o oposto de Botvinnik: fumante inveterado, mais do que chegado a um copo, dado ao que chamou de “caça às moças”, indisciplinado a ponto de escapar à noite da concentração e levar uma garrafada na cabeça numa boate em Havana, com tendência a jogar para a platéia, desprezando a abordagem científica em xadrez (“xadrez é arte”), sempre disposto a fazer a tática sobressair em relação à estratégia. Não por acaso, Smyslov, um estrategista, disse que o estilo de Tahl “não era mais do que um conjunto de truques”.

Essa não era a opinião de Botvinnik, que compreendia melhor do que Smyslov a verdade enunciada por Lasker no final do século XIX: “xadrez é luta”. Se é lícita a comparação, Tahl é o Garrincha do xadrez (até em certas tiradas eles se parecem: em 1958, um jornalista perguntou-lhe quando seria campeão do mundo. Resposta: “primeiro preciso combinar com os outros grandes mestres”). Todos gostavam dele, até mesmo o próprio Smyslov, e outros jogadores que em tudo eram opostos – foi muito amigo de seu antípoda perfeito no xadrez, o futuro campeão Tigran Petrosian. Aliás, até Fischer, o que é quase um milagre, considerando-se a hostilidade deste em relação aos jogadores soviéticos – e não só aos soviéticos.

Em 1958, além de vencer outra vez o campeonato da URSS, Tahl venceu o Torneio Interzonal de Portoroz, Iugoslávia, qualificando-se para o Torneio de Candidatos. No ano seguinte, ele venceria também esse torneio, e com um resultado espetacular: no confronto direto (os jogadores disputavam quatro partidas entre si), ele venceu 4 vezes Bobby Fischer, 2 vezes Smyslov e 3 vezes o iugoslavo Gligoric – provavelmente, na época, o jogador mais forte fora da URSS. Apenas o segundo colocado, Paul Keres, conseguiu um score favorável no confronto com Tahl – 3 vitórias e uma derrota.

Desafiante de Botvinnik, venceu-o em 1960 – derrotou o veterano campeão em 6 partidas, perdeu em apenas duas, e fechou o match já na 21ª partida, três antes do limite de 24 partidas. Era, depois disso, o mais jovem campeão mundial, até então.

Mas ainda havia o match-revanche. E Botvinnik, apesar da diferença de idade – 25 anos a favor de Tahl - resolveu enfrentá-lo. Não possuía toda a compreensão do jogo de Tahl que adquiriu depois, mas considerou suficiente a que, então, conseguiu chegar. Como escreveu, nas “Partidas Selectas”: “analisando o encontro sob um enfoque criativo, nosso [primeiro] match também proporcionou abundante material para identificar as debilidades de jogo do jovem campeão. Inclusive quando não estava em consonância com o espírito da posição, Tahl se esforçava para agudizar o jogo. Lançava-se em posições difíceis, só para alcançar maior mobilidade para suas peças, com o que podia mostrar sua capacidade única para o cálculo de variantes, assim como... a falta de tempo do adversário para pensar as jogadas. Este enfoque utilitário em relação ao xadrez lhe assegurou êxito, mas a um preço muito alto. Fechou-se em um estilo de jogo unilateral, estreitou as possibilidades criativas e engendrou a possibilidade de um futuro fracasso”.

Porém, em 1961, Botvinnik era o único a fazer esse julgamento. As previsões eram todas a favor de Tahl, um jogador de quem Fischer disse ao iugoslavo Dimitrije Bjelica: “Pode-se esperar qualquer coisa de Tahl” (cf. o livro de Bjelica, “Bobby Fischer”, na série “Kings of Chess”). A imprensa soviética estava toda por Tahl e contra Botvinnik. Um dos poucos torcedores que este ainda mantinha era Leonid Brezhnev, na época presidente do Soviet Supremo. Mas, como Brezhnev disse depois a Botvinnik, foi uma torcida solitária dentro de sua própria casa...

Infelizmente, já nessa época a frágil saúde do jovem campeão começou a tornar-se um problema. Tahl era portador, ou era acometido periodicamente, de uma série de doenças, entre as quais um problema renal que o acompanhou até a morte – ocorrida em junho de 1992, após, no dia anterior, fugir do hospital, comparecer a um torneio em cadeira de rodas, e vencer a partida com um brilho que lembrava o jovem do final da década de 50. Como lembrou, numa entrevista em 2003, sua primeira mulher, Sally Landau, um mês antes, em outra fuga do hospital, ele havia sido o único a derrotar Kasparov, então no auge, no Torneio de “Blitz” (partidas rápidas) de Moscou.

Com a notícia de que Tahl estava doente em Riga, Botvinnik propôs um adiamento, desde que o campeão, de acordo com as regras, apresentasse um atestado médico. Tahl recusou o adiamento. Provavelmente, ele sabia, ou sentia, que se tivesse de esperar pela recuperação completa, nunca mais jogaria xadrez em competições.

O match foi algo espetacular, mas não à maneira de Tahl. Nesse match, Botvinnik conseguiu aquilo que não conseguira no match com Bronstein: mostrar como um estrategista pode enfrentar e vencer um jogador tático – nesse caso, um tático bem maior do que Bronstein.

Simplesmente, ele não deu – ou quase não deu – oportunidade para que Tahl exercesse seu talento: “eu resolvi jogar trabalhando em duas direções: (1) aprender com Tahl a como ser um bom e astuto prático, e, (2) preparar o tipo de aberturas, e, associados a elas, planos de meio-jogo, em que a luta é de natureza fechada, o tabuleiro é cindido em seções separadas, as peças não são demasiado móveis. Nunca pensar se a minha posição é objetivamente pior nesse caso. Pelo menos meu oponente não seria capaz de explorar sua rápida reação e memória (e [assim] minha compreensão das posições falaria mais alto)” (“Achieving the Aim”, pág. 161).

O match foi no terreno escolhido por Botvinnik – e, nesse terreno, a estratégia, ele era, realmente, e apesar da idade, superior a Tahl. Com 10 vitórias contra 5, o match terminou com a recuperação do título – e Botvinnik já estava com 50 anos, uma idade avançada para um campeão mundial.
FISCHER
No Torneio de Candidatos de Curaçao, em 1962, o armênio Tigran Petrosian saiu vencedor.

Porém, logo que foi encerrado o Torneio de Curaçao, e antes do match de Petrosian com Botvinnik, a revista americana “Sports Illustrated”, em agosto de 1962, publicou um artigo que estabeleceria o eixo da campanha anti-soviética no xadrez pelas décadas seguintes. A força especial do artigo era dada pelo seu autor, o único jogador americano em condições de enfrentar os melhores jogadores soviéticos, Robert James Fischer – ou, simplesmente, Bobby Fischer. Por isso, é necessário que nos detenhamos agora nele – o que faremos na próxima edição.